sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Rute - 4ª parte - O fim do mistério




No dia seguinte, acordou decidido. Barbeou-se, tomou um banho, preparou uma mala pequena com algumas peças de roupa e saiu para a rua: Não haveriam de lhe deitar a mão sem encontrar Rute.
O céu estava forrado a nuvens escuras, ameaçando o mundo com um novo dilúvio que toda a gente parecia ignorar. Ao longe, escutavam-se já trovões.
O primeiro passo foi ir ter com um amigo na repartição de finanças e lá obteve as informações fiscais dela, (tinha mudado de residência por várias vezes e a esta hora não deveria já estar na última indicada) mas havia outra informação importante; o nome e a morada do escritório de advogados do ex-marido.
Pediu para marcar um encontro com ele, através da secretária do escritório. Alegou “assuntos do seu interesse, relacionados com a sua ex-esposa” e deixou o número do telemóvel.
Menos de vinte minutos depois recebia uma chamada:
– Boa tarde! Meu nome é Aníbal Silveira. Ligou há pouco com a minha secretária, pode esclarecer-me qual é o assunto? Não tenho nada a ver com a minha ex-mulher e não tenho nenhum contacto com ela, há alguns anos. Inclusivamente, já enviei cartas para os principais bancos e para as finanças a isentar-me de quaisquer responsabilidades com os seus atos e eventuais custos que advenham daí.
– Boa tarde. Descanse, não pretendo acusá-lo nem responsabilizá-lo de nada. - João tentou acalmar o interlocutor. – Simplesmente há um assunto para resolver com a Rute e não consigo contactá-la.
– Já tentou o apartamento na rua Cinco de maio? - A voz continuava na defensiva.
– Não sabia que tinha um apartamento nessa morada, a última que tenho é na rua da Beira Alta. - Mentiu, dando a morada anterior ao Cinco de maio que constava da sua lista. Aníbal, por uns segundos, ficou em silêncio antes de perguntar: :
– Pode vir ao meu escritório agora? Quero conversar com mais calma.
– Com certeza, dentro de dez minutos estarei aí. Obrigado e  até já.
O escritório ficava num edifício elegante e as instalações tinham um aspeto usado, mas de bom gosto. Não era uma firma qualquer, via-se que deveria ter muitos (ou pelo menos bons) clientes.
Não tardou muito, após se apresentar à rececionista, até ser chamado a um gabinete.
A sala era ampla, mas mais parecida com um escritório de uma casa particular do que com o de  uma firma. Havia à esquerda uma estante enorme cheia de livros, uma lareira e um conjunto de sofás em pele, voltados em semicírculo para ela. Mesmo em frente, a alguns metros da entrada, uma imponente secretária em madeira maciça bem envernizada, mas de aspeto antigo. Encostada a ela, um homem alto de cabelos platinados, aguardava em pé com os braços cruzados sobre o peito.
João aproximou-se em passos largos e esticou a mão apresentando-se:
– João Ferreira, muito obrigado por ter a amabilidade de me receber.
– Aníbal Silveira, muito prazer. Queira sentar-se por favor. - O anfitrião aceitou a mão estendida, após o que indicou os sofás.
Sentaram-se ambos e João mudou várias vezes de posição enquanto ganhava tempo, sem saber como começar.
– O senhor é da polícia? - Aníbal sentou-se num gesto apenas, ficando estático no sofá, de costas direitas. - Investigador? Advogado?
– Não, não!. - Desmentiu rapidamente – Sou um ex-colega de trabalho que tem uma necessidade urgente de a encontrar para resolver uns assuntos pendentes; ela abandonou o emprego e ninguém sabe onde a encontrar.
– Lamento dizer-lhe isto, mas se ela desapareceu assim de repente, quer dizer que já fez uma malandragem qualquer e tratou de desaparecer de circulação. E o facto de você estar aqui, não sendo nenhum dos três tipos de pessoas que enunciei, então quer dizer que, ou é vítima ou achava que era cúmplice. Perdoe-me a franqueza. 
João olhou aquele homem, conhecedor de todas as vertentes do problema que era Rute.
– Não sei bem por onde começar. - João rendeu-se.
– Podemos começar pelo princípio. Aceita uma bebida? - O anfitrião ergueu-se para servir, agora que já tinha percebido todo o enredo.
A narrativa da história demorou apenas uns minutos, tendo sido interrompida por algumas perguntas de Aníbal. João foi sincero e narrou praticamente tudo, desde a relação deles até às histórias que ela lhe contara e à forma como teve conhecimento de tudo. No fim, ficaram ambos em silêncio de olhar perdido no copo vazio que mantinham entre as mãos.
Foi Aníbal que interrompeu a meditação e olhando-o nos olhos informou:
– Não há uma maneira simpática de dizer o que tenho a dizer. Por isso aqui vai; Rute é uma vigarista e uma ladra. - Fez uma pausa para que a afirmação fosse digerida. - Não foi sempre assim. Quando casamos, ela trabalhava neste escritório na contabilidade, era altamente eficiente e honesta. O seu trabalho era muito apreciado por todos.
Dirigiu-se para a janela atrás da secretária e, de costas, continuou:
– Tudo começou quando apareceu o irmão dela. Estava desaparecido há uns tempos e regressara, vindo de uma cura de desintoxicação. Tinha uma relação muito próxima com ela e ficou a viver lá em casa, connosco, durante algum tempo. Os problemas começaram a partir daí.
Relembrar aquele período estava a ser tremendamente penoso, mas ao fim e ao cabo, mesmo indo embora, Rute nunca saíra da sua vida com os constantes ecos das suas tropelias. Continuou:
– Começou a desaparecer a meio do expediente e a deixar trabalhos por concluir ou com defeitos. Como era minha esposa, os restantes empregados evitavam de dizer fosse o que fosse e acabavam encobrindo as suas ausências e os trabalhos mal feitos. – Tossiu para clarear a voz .– Andava constantemente com o irmão e gradualmente o desleixo começou a invadir o lar… Não dava instruções, à empregada, para as refeições e não lhe pagava. Já não fazíamos amor. Estava sempre com sono ou já dormia quando eu me deitava.
– Então não reclamava? – João interveio.
– No início não me apercebia de tudo. O facto de estar uma fase sem sexo não era muito grave. Era mesmo isso, uma fase. Mas, um dia a empregada veio falar comigo e contou-me que não recebia há dois meses e que a senhora quase não falava com ela e quando lhe perguntava as ordens para as refeições respondia “Qualquer coisa”. Paguei-lhe, pedi-lhe desculpas… e fiquei preocupado.
– E mesmo assim não falaste com ela?
– Tentei puxar conversa para ver o que dizia. Mas respondeu com incongruências e queixas sem sentido a meu respeito e do meu trabalho excessivo e falta de atenção para com ela.… Enfim, a culpa era minha. E se calhar era. Com as filhas no colégio ela deveria sentir-se muito sozinha.
Aníbal quedou-se um pouco em silêncio, olhando pela janela e continuando de costas para o seu interlocutor:
– Um dia, no escritório, um dos meus sócios abordou-me por causa de algo que lhe chegou aos ouvidos; o comportamento de Rute nos últimos meses.
Não estava preparado para ouvir o que ouvi. Havia de tudo, maus tratos verbais ao pessoal, desleixo, falta de profissionalismo geral e… desvio de fundos.
Furioso, procurei-a no escritório, claro que não estava lá. Corri para casa e entrei como um furacão, dirigindo-me até à sala onde ouvia vozes. Sentia-se um cheiro estranho, adocicado e havia fumo no ar. Foi então que os vi. - Não conseguiu reter um suspiro. – Enrolados, dois amantes… irmãos. Os charros fumegantes, sabe-se lá de que porcarias, que estavam a fumar criavam uma atmosfera nublosa e irreal. Mas eu não conseguia parar de olhar, paralisado. Até que ela me viu. 
Cobriu-se como pôde, chorou, implorou, arranjou desculpas e explicações esfarrapadas, para algo que a minha mente ainda se recusava a aceitar.
Por fim, consegui recuperar o autocontrolo e com a voz que consegui arranjar disse-lhe que queria os dois fora da minha casa imediatamente. Ela passou das súplicas às ameaças e por fim deu-me um estalo ao qual eu respondi com toda a raiva que me dilacerava a alma. Ela caiu e aquele animal, que era o irmão dela, atirou-se a mim e lutámos. Ele era mais novo, mas não estava com todas as faculdades e dei-lhe uma grande tareia enquanto ela gritava como cabra que é.
Em seguida, fui buscar a minha arma e só lhes dei tempo para se vestirem, antes de  os pôr fora da porta.
Ela apresentou queixa por maus tratos e eu exigi o divórcio que se arrastou por vários anos. Eu consegui a casa, mas ela levou-me um dos carros (o meu) e muito dinheiro.
De vez em quando, chegam-me notícias das patifarias daquele par; mais umas pessoas enganadas e roubadas e a polícia acaba sempre por me vir bater à porta a fazer perguntas.
… O resto é a sua história.
João estava sem palavras. Não conseguia digerir toda aquela informação e ainda estava de boca aberta a olhar o seu anfitrião, quando ele se voltou e, de lágrimas nos olhos, acrescentou:
– Ah, já me esquecia, realmente temos duas meninas maravilhosas num colégio interno caríssimo. Rute nunca foi uma mãe extremosa e ficou felicíssima com a ideia de se ver livre delas e da responsabilidade de as educar. Sim, aquele colégio foi exigência minha mas sou EU quem está a pagar, nunca ela.
Agora, se não se importa, gostaria de ficar sozinho.
– Com certeza. – O aturdido João levantou-se meio trôpego sem saber o que mais dizer e encaminhou-se para a entrada balbuciando – Obrigado pela sua ajuda.
– Espere!. – Aníbal abriu a gaveta da secretária e trouxe junto dele, já à porta, um papel e algo envolvido num pano de camurça castanha. – Este papel tem a morada de um apartamento meu que sei que eles utilizam de vez em quando e aqui... – mostrou o embrulho – está uma arma que comprei no mercado negro, sem número de série, para matar aqueles dois canalhas… nunca tive coragem. Leve-a, pode precisar de se defender. E agora, adeus.
Suave, mas firmemente, empurrou-o para fora do gabinete.



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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Rute - 3ª parte - O golpe



Os meses foram correndo e as coisas pareceram voltar ao normal. Ela continuava a não dormir no apartamento dele nem a querer mudar-se, mas jantavam juntos e lá passavam parte da noite .
No emprego, ela ia tomando cada vez mais as rédeas dos trabalhos e, com a  permissividade dele, tomava decisões com o resto da equipa.
João começava agora a ter uma vida mais descansada e, ao contrário do que teria imaginado, estava a gostar.
Por fim, chegaram as férias e não podiam ausentar-se ambos ao mesmo tempo por isso adiaram o mais que puderam. Era já outubro quando se permitiu gozar três merecidas semanas. Nos outros anos, ele quase não tinha senão um dia ou dois espaçados, pois ia ao escritório quase todos dias; agora sim, seriam férias.
Os fins de tarde eram os melhores. Ela saía do emprego, correndo para os seus braços, para umas horas de amor e para o jantar,  sendo esse o momento em que Rute o punha ao corrente de todas as novidades.
Assim se passaram quase duas semanas até que João recebeu um telefonema de um primo que vivia na aldeia transmontana, de onde ele era oriundo; tinha de se deslocar lá para acertarem alguns documentos de propriedades adquiridas aos pais de João e assinar títulos em falta.
Foi com pesar que se despediu da sua amada. Promessas de amor, de telefonemas diários e juras de memória eternas, como se fossem separar-se por alguns anos... E não apenas por um par de dias.
A viagem foi mais rápida do que ele imaginara e, fruto de dois dias de muita atividade entre conservatórias e advogados, não estranhou muito a ausência do contacto de Rute. Quando tentou ligar-lhe pelo telemóvel, no comboio de regresso e ela não atendeu  ficou cismado; e mais ainda com o passar das horas sem que lhe devolvesse a chamada.… Teria acontecido alguma coisa? E ele que nunca fora a casa dela (ela sempre o demoveu) e nem tinha nenhum número fixo com que a contactar.
Passou uma noite infernal, tentando imaginar o que teria acontecido . Ela nunca tinha deixado passar um dia sem falar com ele…
No outro dia, logo pela manhã, dirigiu-se ao escritório e cumprimentou um grupo de colegas, boquiabertos à sua chegada, que lhe responderam com monossílabos hesitantes.
Não percebeu o espanto, mas a sua preocupação era outra e dirigiu-se rapidamente para o seu gabinete, cuja secretária estava impecavelmente vazia. Os usuais montes que continham o seu trabalho haviam desaparecido.
Após pensar um pouco, voltou-se para se ver de caras com um dos seus colegas, o Faria. Nunca teve nenhuma simpatia por aquele indivíduo que apresentava ar de superioridade e desprezo pela raça humana.
– Que se passa aqui? – Perguntou – Onde está a Rute?
Faria pareceu ficar surpreendido:
– Não a viste? Há quanto tempo não falas com ela?
– Há dois dias, mais ou menos. Onde está?
– Não sei. Julguei que estarias com ela. – O ar de surpreendido foi novamente substituído pelo de superioridade trocista. – O patrão quer falar contigo. É para ir já ao gabinete dele.
Por um instante, João esteve para descarregar a sua fúria numas quantas palavras de “apreço” pela atitude que esta abominável criatura fazia questão de exibir, mas conteve-se, virou-lhe simplesmente as costas e dirigiu-se para o gabinete do patrão.
A porta estava aberta e Fernandes estava sentado de costas direitas virado para ela. Aguardava-o.
– Dá-me licença?
O rosto inexpressivo olhava-o de frente, parecendo hesitar antes de responder:
– Entre e feche a porta.
O tom ríspido nunca fora empregue com ele. Os seus sentidos disparavam campainhas de alarme. Obedeceu.
Não foi convidado a sentar e manteve-se de  pé, em frente à secretária, sentindo-se um pobre coitado prestes a ser repreendido sem saber por que razão. Ele continuou a olhá-lo, da sua cadeira de braços, almofadada a couro genuíno, como que perguntando-se por onde começar.
– Mandou-me chamar? – João deu o mote.
– Não foi preciso. Você veio de vontade própria. – O tom continuava agressivo mas ao mesmo tempo surpreso. – Não tem nada para me dizer?
– Dizer? - O espanto crescia dentro dele. – Não sei o que se passa. Estou de férias, lembra-se? Vinha procurar a Rute…
– A Rute? . Quer dizer que a sua gaja não falou consigo?
Sentiu o sangue ferver nas veias com o insulto, mas conseguiu controlar-se o suficiente para inquirir:
– Não sei sobre o que se está a falar. A Rute não é a minha gaja, mas sim uma senhora que lhe merece respeito! Agradecia que não falasse dela, desse modo.
– Não costumo respeitar as pessoas que me roubam! – Gritou erguendo-se. – Se me roubam, não me respeitam.
– Roubar? – A voz tremeu-lhe – Não percebo.
– Mas você continua nisso? Faz-se de “sonso”? Está tudo descoberto! O Faria descobriu a “marosca” que vocês os dois estavam a fazer. Faturas falsas, pagamentos a fornecedores inexistentes, o diabo! Este tempo todo a trabalhar para mim e faz-me uma desfeita destas. Só ainda não deu com os ossos na cadeia porque quero acreditar que esta puta lhe deu a volta à cabeça e que antes dela você era um homem honesto.
O coração parecia querer sair-lhe do peito, batendo furiosamente, latejando na garganta, na cabeça, nas mãos…
– Então? – Fernandes insistia ante a falta de resposta dele. – Não tem nada a dizer? Neste momento, o Faria, está a auditar todas as contas dos anos anteriores para verificar há quantos anos isto se passa.
– Não vai encontrar nada… - A voz sumida quase nem se ouvia, enquanto desviava o olhar e desapertava o colarinho que parecia estrangulá-lo.
– Ferreira, ou melhor, João... – Pareceu acalmar-se um pouco enquanto se dirigia para ele e lhe agarrava um braço. – Diga-me que não tem nada a ver com isto. Diga-me que não traiu a minha confiança e que essa cabra nos enganou a todos.
O olhar que deitou ao patrão, com as lágrimas a querer irromper, parecia o de um alucinado. Olhos esbugalhados e vermelhos, pupilas dilatadas e peito arfante. As pernas tremiam-lhe, ameaçando falhar a todo o momento.
– Diga-me. – Implorou mais suave. – Diga-me que não está metido nisto. Chamamos a polícia para que vá atrás dela e tudo voltará a ser como antes.
– A policia não! – Conseguiu rouquejar em voz sumida – Por favor, policia não!. Diga-me onde ela está. Tem que ser um mal-entendido.
Fernandes voltou-lhe as costas e caminhou lentamente até à parede. Aí, após o que pareceram uns segundos de reflexão, olhou-o de frente resmungando:
– Você é mais imbecil do que eu pensava. Deixou que um rabo de saias lhe “comesse” o juízo. Deixou-se pensar com a cabeça errada este tempo todo! Idiota! Vá-se embora da minha vista! Vá procurar a gaja,. ela disse que ia ter consigo. Disse que já não tinham dinheiro para devolver o que roubaram e que se preparavam para sair do país, você e ela. Na hora, só não chamei a polícia por sua causa. Sou tão estúpido, esperava que você desmentisse tudo.
– Não é o que parece… Não pode ser! - Gemeu – Eu vou procurá-la e trago-a cá novamente, tem que haver uma explicação...
– Vá-se embora! – Gritou de novo – Ponha-se a andar da minha vista. Considere o facto de o não mandar prender agora mesmo como uma recompensa pelos anos que me serviu honestamente, penso eu. E vá procurar essa puta. Na minha ideia já está longe há muito. Enganou-nos a ambos. Desapareça da minha vista que eu vou participar isto e depois serão vocês e as autoridades. Rua!!!
Abandonou o gabinete como um sonâmbulo e atravessou o escritório, por entre os ex-colegas, sem nada ver nem ouvir, só conseguindo recuperar as sensações no exterior do edifício.
Corria uma brisa fresca. O ruído dos carros em circulação e das pessoas que passavam atarefadas, trouxe-o de volta à realidade.
Não sabe quantas horas vagueou pelas ruas, mas já era noite quando deu por si à porta de casa. Entrou, atirou-se para cima do sofá e adormeceu profundamente.



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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Rute - 2ª parte - Revelações



No dia seguinte, a manhã estava cinzenta,  tal como tinha estado nos últimos dias. Porém, para ele, a pequena réstia de luz teimosa que rompia entre as nuvens espessas era como um esplendoroso raio de sol.
Caminhou, a passos largos, para o emprego, revelando uma energia que nem ele sabia possuir.
Ao entrar no edifício do escritório e dirigir-se ao elevador, uma voz chamou-o das escadas. Era Rute.
O olhar compenetrado e o rosto sério emitiram um brilho apaixonado ao vê-la.
– Rute! – Exclamou – Minha querida.
– Vem cá depressa! – Apressou-o ela. – Rápido!
Ele correu e refugiaram-se nas escadas, fechando a porta atrás deles.
Os braços dele envolveram-na enquanto a sua boca procurava a dela sofregamente.
– Espera! – Ordenou ela fugindo com a boca e afastando-o. – Espera aí, tenho uma coisa para te dizer.
Largou-a. Ficaram uns segundos a olhar-se fixamente. Um, temendo o que o outro teria para falar e este pensando como lho dizer.
Ela trazia o rosto quase sem maquilhagem, como de costume, um blusão fino impermeável amarelo sobre uma blusa branca entreaberta e uma saia azul-marinho que lhe dava pelo joelho. 
A iluminação das escadas apagou-se mas, pela luz difusa de uma claraboia, lá muito no alto, os dois pares de olhos brilhavam como estrelas, húmidos e inquietos.
– Que foi? – A voz dele tornou-se sonora.
– Queria dizer-te… - A voz feminina hesitava – Pedir-te...
– Que esqueça tudo o que aconteceu ontem. – Concluiu ele com secura.
– Não. – A negativa era firme. – Não é isso. Apenas que… não contasses a ninguém, nem… mostrasses nada lá em cima.
O silêncio instalou-se enquanto os olhos perscrutadores do homem tentavam, na pouca iluminação existente, penetrar fundo na alma dela para lhe extorquir a verdade. 
– Sim? – Tinha que haver mais.
– Só isso. – Gemeu ela – Não estou preparada ainda para assumir uma relação perante toda a gente.
– Sim? – Insistência fria.
– Só isso, meu querido. – Reafirmou – Não quero que comecem já especulações e críticas. Vamos continuar assim algum tempo, sem que ninguém saiba, encontramo-nos, mas não precisamos de publicidade.
– Que esperas conseguir com isso?
– Nada. Isto é para ver se corre bem, percebes? Se não der, paciência, ninguém tem nada com isso mas também ninguém soube de nada.
– Não estou a entender o teu receio.
– Bolas. Não estás a facilitar nada. Tenta entender, eu casei e divorciei-me, não vês? Se não der resultado, é porque eu sou uma esta ou  uma aquela e não consigo segurar os homens, e ninguém consegue viver comigo e blá, blá, blá…
O sorriso aflorou facilmente aos lábios dele.
– É esse o teu medo? Do que as pessoas dirão se não der certo? – Abraçou-a sem resistência. – Tolinha. Como podes ser tão avançada numas coisas e tão atrasada noutras? Tão tolinha, minha querida!
– Queres dizer que aceitas? – O rosto ganhou brilho na obscuridade. – Que não vais andar por aí a falar a torto e a direito do nosso caso?
Ele colocou as mãos, uma de cada lado do rosto pequeno de pele macia e acariciou-lhe a nuca, entre os cabelos, com os dedos compridos e finos:
– Meu amor, eu não sou propriamente um adolescente que anda para aí a apregoar as suas conquistas. Tenho-te demasiado respeito para entrar em brincadeiras.
Ela saltou-lhe para o colo e apertou-o sensualmente com as pernas em volta da cintura, encostando e pressionando o baixo-ventre.
Não tardou que fizessem amor ali mesmo, em pé, sujeitos a serem surpreendidos a qualquer momento.
Foi uma paixão fugaz, imediata e urgente. Uma satisfação mútua, tão necessária como desejada, para selarem o pacto que acabavam de fazer.
O clímax foi rápido, estavam ambos preocupados com a porta que podia ser empurrada e as escadas invadidas por um qualquer colega de trabalho.
Compuseram-se, rapidamente, entre risos cúmplices e pequenos beliscões traquinas.
– Estamos combinados então? – Ela insistia – Eu vou pelo elevador e tu pelas escadas. Lá em cima voltamos a ser o Sr. Ferreira e a Menina Rute, ok?
– Ok. Ok, vai lá embora rápido que já estamos atrasados.
Foi premiado com mais um beijo fugidio, dado por aquela aparição idílica que se evaporou através da porta que dava para o átrio.
Ele soltou um longo suspiro, premiu o botão da luz e começou a lenta escalada até ao 3º andar, com as pernas inseguras do esforço recente…
– Já não tenho idade para estas coisas. – Lamentou-se.
Aquele  dia e todos os que se lhe seguiram foram todos muito iguais. Saíam do emprego separados e encontravam-se em sítios alternados para jantar e depois a noite terminava, invariavelmente, na casa dele onde ficavam até de madrugada. Até que ela se despedia e voltava para a sua própria habitação a alguns quilómetros dali.
Nunca quisera passar lá a noite nem ceder aos insistentes pedidos dele para que se mudasse para ali.
Até a casa dele saía, lentamente, do marasmo e recuperava de anos de semiobscuridade e pó limpo com displicência. Contratara uma empregada mais eficaz do que a velha Dona Marieta que ameaçava reforma há já uns anos e até as suas camisas e fatos andavam muito mais bem engomados e cuidados.
A vida corria-lhe bem. Rute estava a fazer dele um homem novo e ele próprio sentia que os anos lhe pesavam menos. Tratava os colegas e subordinados com mais cuidado e menos desconfiança e, principalmente, não perdia uma oportunidade para elogiar as capacidades profissionais dela com especial ênfase na presença do patrão.
Não imaginara nunca que aquilo era a felicidade e que ele poderia usufruir dela depois de tantos anos julgando que vivia.
Mas, mesmo o maior dos sonhos tem um “papão”, até o mais belo dia de verão tem uma nuvem teimosa... e nem o melhor pano escapa de uma nódoa.
Uma noite, ela estava estranhamente calada. O jantar, na sala dele, decorria em silêncio e ele sentia-se muito nervoso, tentando a todo o custo trazê-la de volta ao seu caráter.
Tentou falar sobre o trabalho, contou uma anedota (não tinha muita habilidade), puxou conversa sobre a roupa que ela vestia… Nada resultava. Teria de haver uma abordagem direta.
– Que tens, meu amor?
Ela esboçou um sorriso triste com olhos de quem tinha acordado há muito pouco tempo.
– Nada, meu querido, não se passa nada. Estou só a pensar.
– E eu? Estou incluído nos teus pensamentos?
O rosto melancólico suavizou-se ainda mais enquanto passava a mão, carinhosamente, pelo rosto dele e lhe respondia:
– Tu estás sempre nos meus pensamentos.
Aquelas frases deixavam-no sempre sem saber o que dizer:
– Eu… Diz-me o que se passa. Estás doente?
– Não. Não estou doente.
– Então?
– Estou triste apenas.
– Porquê? Que te fizeram?
– Nada, esquece. Não se fala mais nisso.
– Desculpa! – Impôs-se ele – Acho que tenho o direito de saber o que se passa e ver se te posso ajudar.
– Tenho um problema muito grave para resolver. – Cedeu finalmente.
– De certeza que não é nada que não se consiga resolver. Vá, diz-me de que se trata.
Ela olhou-o profundamente nos olhos, enquanto meditava e uma lágrima teimosa espreitava ameaçando cair.
– O meu marido não manda dinheiro há quase um ano e ninguém sabe onde ele está. A minha vida tem estado muito complicada… dívidas…- Explodiu num pranto soluçante, com a cabeça encostada em seu ombro.
– Dívidas? – Surpreendeu-se – Mas tu não ganhas nada mal, que dívidas podes ter que te consomem todo o ordenado? Vives só e  nestes últimos meses temos vivido praticamente do meu salário…
Ela puxou a cabeça para trás violentamente e vociferou:
– Que sabes tu? Com que te preocupas tu, além da tua vidinha pacata? Esqueces que eu tive uma vida antes de ti? Ou achas que nasci no dia em que te vi pela primeira vez?
– Espera, calma! – Tentou sossegá-la – Eu estou do teu lado, lembras-te?
 O olhar de Rute pareceu soltar faíscas de ódio, durante mais uns segundos. antes de se atirar em novo choro sobre o colo do aturdido companheiro.
– Não podes compreender… Gastei muito dinheiro com o meu divórcio e fui enganada pelo meu marido e pelo meu advogado. Ainda estou a pagar honorários.
As mãos finas e pálidas acariciavam lenta e distraidamente o longo cabelo dela, enquanto no interior da sua cabeça, as ideias, baralhadas, se misturavam e confundiam.
– Mas… Não posso compreender… Que enormidade de dívida tem de ser essa para… Há quanto tempo…?
– Não é só isso. – As confissões pareciam não ter fim entre os soluços. .– Tenho duas filhas…
– Duas filhas?!? – Aquela era a noite mais complicada da sua vida. – Nunca disseste nada!
A mulher sentou-se, enquanto limpava as lágrimas com as costas da mão e o olhava com um misto de ressentimento e pena.
– Alguma vez o perguntaste? Alguma vez quiseste saber mais a meu respeito do que se poderíamos estar juntos no dia seguinte? Se jantaria e faria amor contigo? Tens de concordar que as tuas preocupações sempre foram muito limitadas, pelo que não me deves culpar de não te dizer isto ou aquilo.
Ele torturou com as mãos, por segundos, a sua boca e as maçãs do rosto enquanto digeria mais aquela inesperada acusação.
– Não achas? – O choro desesperado dera lugar a uma calma fria e implacável. – Que esperas de mim? Que viva apenas para ti, nos momentos que estou contigo, e que não te mace com as minhas coisas e com a vida que tenho quando não estamos juntos?
– Chega! – Exigiu João – É assim que recebes uma oferta de ajuda? Quando foi que me contaste algo acerca do teu passado? Estavas à espera que te perguntasse? Eu nunca te perguntaria nada sem saber que querias falar, já ouviste falar de boa educação? Vivi estes meses todos num mar de felicidade porque imaginava que também tu assim estavas. Partilhei contigo tudo o que tenho e tudo o que de teu quiseste partilhar comigo… Mais não podia fazer. Dei-te tudo e tu deste-me o que quiseste!
A boca entreaberta, os olhos abertos de incredulidade e o queixo trémulo dela, ameaçavam a proximidade de mais uma torrente de lágrimas. Mas ele, perdida a calma, não estava com vontade de engolir a raiva que sentia.
– Todo este tempo deixei que seguisses à tua própria velocidade, que guiasses os nossos caminhos,e que fizesses as coisas como querias … Já nem reconheço a minha vida, mas acho que não entendo como foi que consegui viver tantos anos daquela maneira. Tu és um anjo enviado para dar luz, cor e sentido à minha existência sem objetivos.
Com tristeza e desânimo, levantou-se,  voltou as costas, meio curvado e com as mãos pousadas no guarda-louça ripostou:
– És a razão para eu viver. Querias que rebuscasse a galinha dos ovos de ouro como o lavrador ganancioso? Que remexesse em algo que não sabia se querias ver mexido, arriscando-me a perder a coisa mais maravilhosa que me aconteceu na vida?
Sentiu os braços finos a envolver a cintura, enquanto o calor do ventre e dos seios, sobre as costas, lhe provocava um arrepio na espinha.
– Desculpa-me! – Pediu num sussurro ainda chorosa mas arrependida. Não tenho o direito de te recriminar depois de uma entrega tão sincera e tão doce como tem sido a tua. Não tens culpa do meu passado nem das minhas frustrações. És a primeira pessoa, em muitos anos, que me traz um bocadinho de paz e felicidade sem me pedir nada em troca.
Voltou-se e apertou-a, beijando com suavidade o cabelo perfumado e sedoso, encostado no rosto.
Apartou-a de si e, olhando-a de frente, limpou as lágrimas que ainda restavam naquele rosto amado enquanto retomava a conversa onde tinham terminado, como se nada se tivesse passado.
– Então, duas crianças! E onde andam os diabretes?
Rute não pôde  deixar de esboçar um sorriso, enquanto respondia:
– Mariana e Filipa, dez e doze anos respetivamente. Estão num colégio interno, caríssimo, por exigência dele. Vejo-as uma vez por mês.
Guiou-a para que se sentasse de novo em frente a ele, enquanto a fitava profundamente.
– Quanto mais olho para ti, menos me pareces do estilo de ser enganada dessa forma. – Ele tentava ler os pensamentos no olhar vivo e encurralado dela. – Pelo que me contaste ele deve ser um homem de posses… Não desaparece assim do dia para a noite. Tem com certeza negócios, coisas de que não se pode afastar, um escritório, um emprego, sei lá!
Ela ergueu-se rapidamente e voltou-lhe as costas como que querendo terminar  aquele assunto.
– Não interessa. É problema meu e sou eu que tenho de o resolver.
João ergueu-se também e, passando  a mão pelo cabelo sedoso e brilhante, pediu:
– Vá, não te abespinhes mais. Eu estou aqui para te ajudar no que estiver ao meu alcance. Diz quanto deves. Vamos ver o que podemos fazer.
– Não quero o teu dinheiro! – Ainda uma ponta de orgulho ferido.
– Vamos parar com isto? – Ele tentava ser conciliador. – Vamos ver se te posso ajudar e depois pagas como puderes.
– Já vai em muito dinheiro… Atrasos, juros de mora…
– Sim? Quanto? – Simulou um ar enfastiado, enquanto tirava do bolso do casaco a carteira com os cheques.
– Cinco mil euros.
Não conseguiu disfarçar a nuvem negra que lhe passou sobre os olhos:
– Cinco mil? É um bocado de dinheiro. Assim uma quantia tão certa?
– Claro que não, mais uns trocados, mas com isso posso eu bem.
Não fez mais comentários, enquanto preenchia o cheque, em pé, sobre a mesa onde os restos da refeição inacabada ainda repousavam.
– Deixa à ordem. – Pediu ela.
– Está bem. – Assentiu após uma curta hesitação – Mas tens que o depositar de qualquer modo. Só tenho cheques “barrados”.
Aquele dia foi uma marca que ficou para sempre no coração inocente dele… Tantos segredos e ele nunca percebera nada, tantas dificuldades, tantas tristezas…




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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Rute - 1ª parte - Solitário


Os tambores do céu ribombavam, ao longe, iluminando a noite em ofuscantes flashes.
Ele estava sentado no chão, ensopado, ao fundo do parque atrás do Lância Flavia branco, que era um dos últimos veículos que ali se encontrava.
Pingas escorriam pelas espessas lentes dos óculos, pelo nariz e pelo canto da boca, levemente descaído, deixando um travo salgado.
O ferimento na face, sangrava um pouco, deixando um fio que marcava o colarinho.
O seu olhar estava parado, as mãos paradas, as pernas abertas e as pingas da chuva deixavam,entre elas, pequenos círculos ondulantes na água que cobria o chão. 
O céu, carregado de nuvens, continuava indiferente aos milhares de pequenos dramas pessoais que infestam a vida destes minúsculos seres mortais que povoam a terra e que sofrem, riem, choram… enlouquecem. A natureza é superior a todas essas insignificâncias que regem as nossas vidas. Essas insignificâncias a que damos tanta importância mas que têm tão pouco valor nesse Grande Projeto que é o  Universo.
E o homem continuava ali parado, magicando na sua vida, no seu próprio projeto que estava agora morto e enterrado… Prematuramente.
Ele até era feliz, escondido atrás da sua secretária de chefe de serviço, esperando pacientemente uma promoção que tardava em chegar enquanto os anos se consumiam um por um.
A vida não era má, aturando diariamente as más disposições do patrão e tentando passá-las para os seus subordinados… era preciso saber manter o respeito.
Os dias corriam, cada um igual ao outro, a viver para o trabalho. Olhado com um desprezo respeitoso pela entidade patronal e com um desprezo receoso pelos colegas e subordinados.
Para os primeiros era um bom “testa de ferro” que fazia cumprir o odioso das necessidades de serviço e para os segundos era o “bufo” e o capacho dos patrões que estava sempre pronto a “tramar” os colegas por mais umas “palmadinhas nas costas”.
Mas era a sua vida e gostava dela. 
À noite, regressava ao seu T1 mobilado descuidadamente, vazio de qualquer carinho que não os lamentos miados do seu gato, impaciente pela refeição da noite.
Partilhava a refeição com ele, na sala pouco iluminada com a televisão que despeja a sua interminável torrente de publicidade, notícias tristes e programas insípidos. Naquela sala que servia simultaneamente de sala de estar, de jantar e escritório, decorada apenas com a mesa envelhecida e a TV em cima dum móvel de estilo indecifrável.
Nas paredes, apenas três molduras; numa, um pequeno quadro representando uma qualquer paisagem que incluía um rio e uma casa num monte, na outra, a clássica ceia de Cristo com as mãos abertas distribuindo o Seu amor igualmente por adoradores e traidores e na outra ainda um diploma onde lhe era reconhecido o curso de Técnico Oficial de Contas, de que ele se orgulhava particularmente. 
Vivia sozinho sim, nunca achara mulher com quem valesse a pena partilhar a vida… Ou nenhuma achara o seu ar enfezado de “rato de biblioteca” digno de mais do que um minuto de atenção logo desviado para outro assunto qualquer.
Os anos iam passando e os seus colegas de trabalho iam-se reformando ou mudando de empregos e ele por ali ia ficando com a competição reduzida… mas cada vez mais velho.
Até que um dia apareceu Rute.
Rute. Cabelo cor de mogno refletindo o brilho das lâmpadas fluorescentes. Rosto fino, olhos verdes vivos e brilhantes, revelando inteligência e firmes propósitos. Tudo isto decorado com uns lábios carnudos e sensuais numa forma alta e bem torneada de seios cheios e firmes… Enfim, um verdadeiro pedaço de tentação.
O seu patrão, Fernandes, apresentou-a como uma ajudante para substituir o colega recentemente reformado e para o apoiar nas suas funções tendo em vista a sua eminente promoção.
Mirou-a a toda a altura através das lentes grossas, emolduradas na armação plástica, enquanto fungava de si para si:
– Demasiado bonita para ser eficiente.
O sorriso, conhecedor e enigmático, que lhe atirou sugeriu ter percebido o comentário e desafiá-lo a esgotar as capacidades dela:
– Muito prazer Sr. Ferreira. - Foi a sua apresentação – Tenho a certeza de que nos vamos entender muito bem.
O passar das semanas foi provando, a pouco e pouco, que ele estava redondamente enganado e que, por trás daquela mulher bonita e cativante, estava uma profissional consciente e altamente eficiente.
A familiaridade decorrente do contacto diário no trabalho foi-se acentuando. Por várias vezes, Ferreira sentiu na pele a diferença dos seus cinquenta e cinco anos nos trinta e quatro de Rute, quando ficavam a trabalhar sozinhos até mais tarde e ele começava a revelar cansaço e falhas de vista enquanto ela continuava incansavelmente.
Dava por si a observá-la e a apreciar a sua companhia, a admirar o seu trabalho e o belo rosto compenetrado nas listagens de incontáveis cifras dos balancetes.
Por vezes, ela parava e devolvia-lhe o olhar acompanhado de um sorriso carinhoso e um brilho desafiador, antes de voltar ao seu trabalho.
Um dia, após terminarem o fecho do ano contabilístico, estavam ambos sós no escritório, o que já começava a tornar-se uma rotina. Elogiaram-se mutuamente pelo trabalho desempenhado na conclusão de mais aquela tarefa.
De repente, o sorriso desapareceu da bela face e olhou-o fixamente dizendo:
– João. Não se importa que o trate por João pois não? – Não esperou sequer pela resposta enquanto continuava – Não acha que já é tempo de nós irmos tomar uma bebida juntos ou jantar, a fim de nos conhecermos melhor?
– Eu… - Ferreira ficou sem palavras.
– Ao fim e ao cabo, trabalhamos juntos há quase um ano, apreciamos o trabalho um do outro (eu sei que sim) e não sabemos nada acerca de nós. – Continuou ela.
O rosto pálido estava perplexo. Uma mulher tão bonita e bem feita como aquela, estava disposta a sair e ser vista junto com um “espécime” como ele. Jantar! Ela estava pronta a jantar com ele. A partilhar uma mesa num restaurante cheio de gente onde todos os olhariam.
Ela ficou imóvel a aguardar a resposta e a tentar entender o significado do seu silêncio e do seu ar surpreendido.
– Eu… - Ele continuava a hesitar.
– Estou a pretender de mais, não é? – Uma sombra de tristeza obscureceu-lhe o rosto. – Peço desculpa por me ter excedido, faça de conta que eu não disse nada e vamos cada um tratar da sua vida.
– Não, espere! – A sua expressão agora era uma agonia de calor e a respiração brotava do peito, com dificuldade. – Não é isso!. Estou apenas surpreendido, mas muito lisonjeado com o seu convite. Aceito com muito gosto.
O brilho radioso do contentamento retornou para iluminar as faces dignas de Boticcelli e a sua voz voltou a ser um trinado primaveril:
– Esplêndido! Onde vamos, então? Vamos no meu carro ou no seu?
– Bem… - Gaguejou – O meu carro não está aqui, a minha casa é relativamente perto pelo que venho a pé todos os dias. E também não tenho grandes experiências de saídas… não sei onde havemos de ir.
– Não há problema, vamos no meu. Conheço um restaurantezinho simpático onde poderemos festejar o meu primeiro fecho de ano nesta empresa.
Abandonaram o escritório e saíram para a noite fria e ventosa de inverno, embrulhados nos sobretudos que não protegiam os rostos das pingas geladas que vagueavam perdidas empurradas pelo vento.
Enquanto caminhavam ela falava e ria, contando histórias dos seus vizinhos e dos seus amigos, com a sua voz juvenil e chilreante, deixando-o embriagado e contagiado pela sua alegria e prazer de viver.
Os seus braços tocaram-se e deram por si a caminhar de braço dado como dois velhos amigos.
Por fim chegaram ao veículo. Por sinal, praticamente o último de todo o parque. Um excelente Lância Flavia branco, de estofos de couro da mesma cor e com todo o aspeto de novo.
– Belo carro!. – Observou – São precisos muitos ordenados para uma coisa destas.
– Nem por isso! – Um sorriso maroto decorou aquele rosto centrado pelo nariz afilado. – Basta um ex-marido com posses e um processo de divórcio.
– Divórcio?
– Sim. Eu até nem gostava muito do carro, mas foi a maneira que consegui de o magoar ainda mais por quase 15 anos a aturar manias. Está chocado?
– Não, de maneira nenhuma, apenas não me lembrei que já tinha sido casada… Tão nova e tão bonita!
–  João! – O ar risonho de estupefação foi como uma manhã de sol em pleno inverno. - Você atirou-me um piropo?
Ele não pôde deixar de sorrir, enquanto entrava no carro:
– Acho que sim. Escapou...
O jantar correu otimamente; uma refeição normal de lombo assado com batatas, mas bem regada com um excelente Douro, rubi, precioso e doce.
Cada golo daquele vinho fazia-o sentir mais jovem e comunicativo, capaz de fazer coisas que até ali achara impossíveis e inatingíveis. Deu por si a falar pelos cotovelos:
– Ah, como é excelente este néctar dos Deuses! Cada gota que deglutimos transporta-nos às encostas forradas de xisto do Rio de Ouro, onde as uvas são arrancadas às pedras à força de braço e calor do sol. Leva-nos numa rodopiante volta pelas serranias do Nordeste Transmontano onde as pessoas são fortes e rudes, mas sãs e francas…
– Mas que coisa tão poética! – Riu surpreendida ao descobrir uma nova faceta do seu companheiro de trabalho. – Isso é de algum livro ou é a inspiração transbordante do álcool?
Ele sentiu o rosto arder com embaraço, mas não se deixou desarmar enquanto confessava:
– Sabe, em tempos eu queria ser escritor. Acho que ainda tenho para lá um ou dois dos meus velhos manuscritos.
– Sério? Daí saíram essas frases tão cheias de sentimento que quase me fizeram ver aquilo que descrevia.
Os olhos de Ferreira focaram-se no rosto feminino com um olhar baço, ausente, o sorriso a desvanecer-se lentamente enquanto a sua mente vagueava longe e deixava escapar mais algumas palavras:
– Trás-os-Montes, meu berço amado e odiado, lar do meu amor, casa da minha dor…
Também Rute ficou séria com aquela súbita e inexplicável mudança de humor:
– Que se passa? Sente-se bem? – A mão dela procurou a dele sobre a mesa e apertou-a procurando despertá-lo do torpor. – João?
Ele estremeceu, acordando naquele momento e olhou-a como se por alguns segundos não a conhecesse nem soubesse o que estava ali a fazer. Mas pouco a pouco, o brilho do conhecimento foi regressando aos seus olhos.
– Desculpe. Não sei o que me deu. Sempre que me chegam as memórias da minha terra… Tanto de bom e tanto de mau, mas acho que as não sentia tão nítidas há muito tempo.
– Namorada? Esposa? – Aventurou-se a adivinhar.
– Bom, não interessa. – Estava a recuperar o seu domínio junto com o vinho que lhe provocava um empolamento na sua autoconfiança. – Acho que já chega de restaurante, não lhe parece? Ou deseja mais alguma coisa?
– Não, não! Estou satisfeita. Acho que se comesse mais alguma coisa rebentava.
Ele pediu a conta com um gesto e pagou com um cartão de crédito brilhante. Completamente novo, visto que quase não o usava.
Saíram para o ar frio e logo que o fizeram, ela meteu o seu braço no dele, provocando uma onda de calor e um arrepio que Ferreira teve dificuldade em disfarçar.
Não tardou que o veículo estivesse à porta dele. Ambos tinham conversado todo o caminho sobre milhões de coisas sem que encontrassem falta de temas. Agora, com o carro parado, voltados um para o outro, continuavam as suas dissertações. Rostos cada vez mais perto, o hálito quente a invadir as narinas, enquanto os olhos lutavam pela supremacia numa tentativa vã para fixar ambas as pupilas ao mesmo tempo.
De repente já não havia mais fuga. Os narizes quase se tocando; fez-se um silêncio pesado de expetativa na cabina.
Ela fechou os olhos num pedido mudo e ele, inclinando ligeiramente o rosto, beijou-a castamente sobre os lábios, como se tocasse uma frágil pétala de rosa e recuou ligeiramente.
Os olhos verdes abriram-se, plenos duma vontade indómita e ela atirou-se num abraço apaixonado e devorador, recheado de beijos quentes plenos de lábios, língua e dentes.
O ruído dos óculos dele a cair e o som da música que tocava no rádio não eram suficientes para os distrair da fome terrível que os animava, sob os apertos e torções com que cada um tentava dominar o outro.
A gravata foi removida, junto com alguns botões da camisa. O lenço dela voou para o banco traseiro logo seguido da blusa e depois do soutien.
Durante cerca de uma hora o veículo estremeceu, de vidros embaciados, abandonado à beira do passeio da rua deserta.
Por fim, ele saiu para a noite gelada, transpirando, camisa desapertada e sobretudo no braço. Inclinou-se e deu-lhe um longo beijo de despedida, através da porta, antes de se voltar e tomar o seu caminho.
Voltou-se quando o carro partiu e acenou um adeus distraído e atordoado.
Entrou na casa fria e escura e foi recebido pelo gato que reclamava de fome e se roçava nas suas pernas, implorando comida.
Ignorou-o e caminhou vacilante, de pernas trémulas, até ao pequeno sofá da sala múltipla deixando-se cair sem forças.
– Como foi que aquilo acontecera? – Perguntava-se – Uma mulher como aquela, bela e desejável. Um verdadeiro modelo para Rodin. Uma joia, um anjo. E fizera amor com ele. Com ele! Com o seu ar de bibliotecário reformado, com os seus óculos grossos e ar enfezado… Um anjo.
Assim se embalou completamente esgotado e entrou num sono agitado, acompanhado pelo miar triste do gato que antevia uma longa noite de fome.

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2ª parte - Revelações


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