quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Terras de Xisto - 1ª parte - A festa fatal







Corriam os primeiros anos do século XX.
Na longínqua Lisboa, reinava despreocupado o bom rei D. Carlos e o mundo parecia ordenado e em paz;
O rei, reinava, o governo legislava, os regedores mandavam, os proprietários enriqueciam e os pobres trabalhavam…
Engordavam os primeiros, enriqueciam os segundos e morriam de fome os últimos.
Tempos duros aqueles, com o pão de cada dia arrancado à força de braço nos terrenos de xisto. Longínquas as terras, agora tornadas próximas por auto-estradas lavradas nas montanhas e máquinas possantes que devoram quilómetros.
Nos remotos montes do Norte do país, muito para trás dos montes, havia uma aldeia igual a tantas outras.
Vista de cima, até não era pequena, com quase dois quilómetros de ponta a ponta. O casario estendia-se ao longo de uma sinuosa rua monte acima ramificando-se em pequenos becos. O ponto mais baixo da rua central era dominado pelo palacete setecentista onde vivia a família mais importante da região e no extremo mais alto pela Igreja tornada rica pelo fervor dos pobres e ostentação dos ricos.
O extremo da aldeia, próximo do palacete, estava sossegado e as luzes das casas apagadas há algum tempo. Já passava das 23:00 horas e amanhã avizinhava-se um novo dia de árduo trabalho.
O céu excepcionalmente sem nuvens daquela noite de Inverno era dominado pela lua cheia cujos raios prateados iluminavam a paisagem.
Passadas apressadas de tamancos de madeira perturbaram a paz da noite ecoando rua fora.
Na casa verde junto da fonte, as pancadas violentas na porta acordaram a jovem mulher que ainda há pouco adormecera.
- Ò ti Maria – Uma voz esganiçada de jovem gritava num dueto com as pancadas na porta – Ti Maria, abra a porta!
A jovem ergueu-se gritando um “Quem é?” mal-humorado enquanto desamarrotava a camisa de noite e se cobria com uma pequena manta. Usava cabelos negros compridos que lhe chegavam ao meio das costas, tinha um nariz fino e afilado e olhos azuis.
As pancadas e os chamamentos repetiam-se como se a não ouvissem: - Ò ti Maria!
- Mafarricos te levem rapaz! Já lá vou! – Gritou novamente enquanto atravessava a cozinha e se dirigia para a entrada.
- Acuda à porta depressa. – Os gritos insistiam.
Abriu a porta com brusquidão surpreendendo o ofegante adolescente escanzelado de cabelos negros revoltos que a olhava entre o surpreendido e o assustado.
- Que foi? Que queres rapaz, que acordas as almas deste mundo e do outro? – Maria, senhora dos seus vinte e poucos anos, enfrentou o jovem.
- Venha depressa. – Ofegou – Venha depressa, foi o Ti Zé…
Estas últimas palavras disse-as já em corrida de regresso para onde viera, tamanqueando rua fora e insistindo – Venha depressa.
- Espera, rapaz! – Gritou ela – Rapaz! Tiago! Espera! Que aconteceu com o meu Zé? Fala!
Era inútil. Já não a ouvia, batendo os tamancos de volta para donde viera.
Correu para o interior da casa gemendo – Mafarrico… que terá acontecido? Aquele endemoninhado já se meteu em sarilhos outra vez.
Vestiu uma saia, cobriu-se com um xale e saiu correndo atrás do rapaz.
Agora eram os tamancos dela que ecoavam na rua ritmados com a respiração ofegante em crescendo com a sua aflição:
- Não há ninguém na rua… que terá acontecido… está toda a gente para lá…
O seu marido, Zé, não perdia uma festa... nem os problemas. Era normal, como era grande e forte, haver sempre alguém com um copito a mais que resolvia medir as forças com ele. A maior das vezes saia vitorioso, arranhado, pisado, mas vitorioso.
Maria sentia-se cada vez mais inquieta e, ao chegar à taberna, onde começavam os archotes iluminados, ouvia já o burburinho que havia para lá da esquina.
O frio mordia-a nas pernas mal protegidas e queimava-lhe as mãos e o rosto deixando-a corada. O seu respirar ofegante transformava-se em nuvens de vapor que saiam da boca.
Reduziu a velocidade instantaneamente assim que encontrou o ajuntamento.
Todos se começaram a calar e a abrir alas à sua chegada, rostos apreensivos, preocupados, ou mesmo zangados.
- Que aconteceu? – Perguntava à direita e à esquerda sem que lhe respondessem – Que houve, vizinha? – Perguntava à mais próxima que a olhava tristemente com as lágrimas nos olhos. – Diga-me por amor de Deus o que aconteceu Ti Eduardo. – Perguntou, sem parar os passos cada vez mais curtos, ao homem dos olhos grandes que desviou o olhar para o chão.
Acabou chegando ao centro do ajuntamento… uma obscena poça de sangue negro como a noite estendia-se no meio do círculo.
Uma nascente de lágrimas brotou dos olhos de Maria ao deparar com tão terrível vestígio e colocando as mãos enclavinhadas ao peito, chorou desesperadamente:
- Ai, valha-me Deus, o meu Zé! Ai, meu Senhor Misericordioso, valei-me.
- Cala-te mulher! – A ordem com uma voz forte carregada de desprezo veio do outro lado da poça. – Cala-te que choras por quem o não merece. - Por entre os soluços, olhou surpreendida o fidalgo que a olhava com porte altivo com o pingalim na mão esquerda batendo no cano da bota – Maldita és que trouxeste a desgraça a minha casa.
Com as mãos no peito, ela olhava incrédula em todas as direcções à procura de uma alma caridosa que lhe explicasse o que se passava e porque era ela a causa da fúria do Senhor Samões, o homem mais importante da aldeia.
- Esse sangue que aí vês, pertence ao meu filho que acabaram de levar daqui entre a vida e a morte vítima do maldito assassino que é o teu marido. – Apontou o pingalim ao peito dela, como se tratasse de uma espada e ameaçou – Cautela, Maria Sobreiro, hoje mesmo o Zé Sobreiro há-de ser caçado como um cão e trazido de rastos aos meus pés para responder pelo crime que cometeu. Se te atravessares no meu caminho ou dos meus homens hás-de levar tamanha tareia que nunca mais poderás andar pelo teu pé. Palavra de André Samões. Que sejas maldita tu e o perro canalha com quem te casaste com a minha bênção, amaldiçoada a hora. A ele, hei-de esfola-lo de chibatada como a um miserável que é e tu, se me voltas a aparecer à frente, mato-te com as minhas próprias mãos.
Terminou a ameaça com uma chibatada na diagonal muito perto do rosto da tão apavorada como espantada jovem e fez meia volta empurrando da sua frente os mais lentos à medida que se afastava em passos rápidos e decididos.

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1 comments:

Everson disse...

Estou imprssionado. Muito bom o argumento e o texto. Tem umas palavras que eu vou ter de buscar ao dicionario, claro está... mas o enredo te dá vontade de seguir lendo. Vamos ao próximo capítulo...

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