quinta-feira, 4 de junho de 2015

Criminoso





A chuva caía copiosa sobre os telhados correndo vertiginosamente para as caleiras rotas e vãos de telhado lançando-se generosamente sobre os transeuntes que, por azar, passavam sob elas.
De vez em quando, um relâmpago abrilhantava o céu escuro coberto de nuvens ameaçadoras.
Até o vento fraco parecia aliado daquele tempo pouco convidativo e lembrando que era  ele o portador daquelas nuvens prenhes de água que inundavam as ruas imundas de lixo.
Miguel caminhava apressadamente sem guarda-chuva, através das poças que insistiam em chapinar acima do cano curto das botas.
Até a camisa, por baixo do casaco ensopado, começava já a ressentir-se e o tecido húmido arrepiava a pele.
As coisas não lhe corriam nada bem desde que saíra da cadeia. Há algum tempo que não lhe aparecia um “trabalhinho” realmente bom, e seguro, onde pudesse retemperar as suas depauperadas finanças.
A última carteira que “trabalhara” no autocarro rendera-lhe um livro de senhas de transportes, um bilhete de identidade imprestável de tão mal tratado, uma fotografia de uma mulher gorda e dois filhos ranhosos e cinco euros e cinquenta cêntimos… Realmente…
As coisas não estavam mesmo nada bem, o carro não tinha gasolina, o irmão recusava-se a emprestar-lhe mais dinheiro e até a gaja que dizia que esperaria por ele até que saísse da prisão se tinha “baldado” sem que nenhum dos amigos soubesse para onde.
Vagueava então pelas ruas à procura de algo descuidado... uma carteira “à mão de semear”, um carro aberto. Até os trocos que um incauto cliente do café deixara para pagar a sua despesa mudaram-se por encanto para a sua algibeira.
A água ensopava o cabelo curto e escorria livremente pelo rosto, pingando do queixo e do bigode loiro e fino que mantinha cuidado.
Mesmo na cadeia, nunca deixara de cuidar do seu aspeto, não deixava crescer o cabelo nem a barba e aparava cuidadosamente o bigode de que se orgulhava. Um dos presos mais velhos chamava-lhe Errol Flynn, parece que era um galã do cinema do tempo do “preto e branco”. A alcunha pegou e começaram a chamar-lhe Flynn.
Aproximava-se da esquina onde costuma estar aquela “garina” que andava a “micar” há alguns dias, sempre no mesmo sítio… ele olhava-a insistentemente ao passar e ela devolvia-lhe o olhar, descarada. Parecia ter “pastel”...
Reduziu o passo e fingiu uma descontração que não tinha.
Ali estava ela. Embrulhada numa capa amarela, guarda-chuva aos quadrados, com o cabelo negro, rebelde enfeitando o rosto moreno. E os olhos… os olhos vivos e atentos a todos os movimentos à sua volta, brilhantes e cheios de vida.
Era alta para mulher, na casa dos trinta. Magra mas insinuante, elegante, mesmo vistosa.
A chuva parecia não a incomodar minimamente e ali estava na mesma esquina, sem que ele soubesse à espera de quê…
Ao aproximar-se olhou-a nos olhos e ela devolveu-lhe um olhar profundo e incendiado tão ausente quanto atento… Sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés quando ela sorriu.
O seu sorriso, era como se o sol rompesse da terra expulsando as nuvens e a chuva. Por instantes, aquele rosto iluminou-se enquanto aquela dádiva de Deus surgia e desaparecia com a mesma rapidez... Os olhos desinteressaram-se dele e encararam-no com frieza.
Tentou falar, mas o que lhe saiu foi um grasnar rouco, fruto do nervosismo.
Tossicou e tentou de novo:
-        Olá.
Com aquele olhar penetrante, ela, pouco mais baixa que ele, perscrutou-o de alto abaixo. O guarda-chuva continuou a abriga-la apenas a ela. Um sorriso irónico acompanhou a resposta:
-        Olá.
-        Já há vários dias que te encontro aqui… - Tentou.
O sorriso desvaneceu-se dando origem a uma expressão séria: - E?
-        E nada – desculpou-se – simplesmente me interrogo que faz uma miúda como tu, aqui sozinha, à espera não sei de quê.
-        Deves ter muito a ver com isso. – O olhar endureceu – És policia?
-        Eu? – A gargalhada saiu-lhe com gosto – Se há coisa que não sou é policia.
O desinteresse regressou e os olhos retornaram para o vazio do outro lado da rua.
-        Então”vaza”. “Desampara-me a loja”.”Dá de frosques.”
-        Eh, calma. – Pediu – Só queria meter um pouco de conversa neste dia horrível e gelado. Parecias-me uma tipa porreira para conversar um pouco.
Aqueles olhos estonteantes olharam-no no fundo da alma e gelaram-no dos pés à cabeça: - Não estás confundido, ó “pázinho”? Achas que estou aqui no ataque, é?
-        Poça… - Lamentou-se – Desculpa lá se é isso que te faço pensar, mas aí, a minha pergunta seria “Quanto é?”, não te parece?
Silêncio. O olhar pareceu aquecer um pouco e a chuva deu a impressão de amainar. O guarda-chuva deslocou-se para proteger um pouco a cabeça irremediavelmente molhada de Miguel: - Que queres então?
-        Sei lá, conversar, já não falo com ninguém há tanto tempo, tu pareces uma miúda simpática… Sinto-me sozinho percebes? E tenho-te visto aí tão só estes dias…
Uma língua voluptuosa humedeceu uns lábios carnudos entreabertos quentes e sensuais mas não respondeu.
-        Se não queres, amigos à mesma… - Conformou-se.
Os lábios formaram um sorriso acompanhado de um olhar semicerrado, desconfiado.
-        Que queres falar então? Do tempo? – E afastou o guarda-chuva olhando para cima para que a água lhe caísse livremente no rosto logo tornando à posição inicial. – Está molhado.
Ele olhou para o lado, constrangido, dando a oportunidade dela o apreciar calmamente.
-        Vamos tomar um café? – Recuperou ele repentinamente.
Um encolher de ombros desinteressado acompanhou a resposta: - Pode ser. Onde?
-        Ali na esquina do outro lado. Vem.
Ele esperou de lado, facultando-lhe a passagem e indicando a direção com o braço direito. Ela acedeu, caminhando majestosamente à sua frente, enquanto atravessava a rua.
Já no estabelecimento, sentados, fez sinal ao empregado que lhe trouxesse dois expresso. A mão esquerda contava as moedas que ainda conservava no bolso: - Espero que não queira mais nada. – Suspirou de si para si.
Todo o salão cheirava a molhado e o chão estava marcado por dezenas de sapatos de todos os tamanhos e feitios que calcorrearam a área em busca de uma bebida quente e reconfortante.
Os vidros, através dos quais se viam pessoas apressadas, escorriam as gotas sujas duma chuva insistente e gordurosa.
-        Estás todo encharcado… - Observou a jovem em jeito de conversa aparentando um pouco de simpatia.
-        É – confirmou – eu e os guarda-chuvas nunca nos demos muito bem. Acho que é qualquer antipatia de nascença.
Um olhar curioso devorou-o fundo nos olhos logo interrompido pela chegada do empregado que pousava as chávenas.
Flutuava um silêncio frio entre ambos enquanto ela tratava do seu café e ele colocava as moedas sobre a mesa.
-        Então? – exigiu ela ao fim de mais alguns segundos e dois goles de café – Que queres falar? Tens algum tema em mente? Aviso-te já que não percebo nada de futebol e abomino a política.
-        Sim. – Um olhar franco e levemente irónico iluminou-lhe o rosto – A minha ideia de convidar uma mulher bonita como tu era de falar de política ou futebol.
-        Belo. Agora já sou uma mulher bonita, estamos a progredir, há pouco era só uma miúda simpática. De que vamos falar então? Vamos, deves ter um tema, não?
Sentiu-se intimidado com tanta impulsividade e olhou-a sem saber bem o que responder até que se lamentou:
-        Assim não estás a fazer as coisas nada fáceis. Que queres que te diga quando falas para mim como se fosses um bófia a interrogar-me? A seguir estás a dizer-me “Bufa cá para fora, quem era o meliante que te ajudou a palmar o auto-rádio ó meliante”.
A gargalhada dela soou como as águas de uma torrente cristalina:
-        Está bem, ganhaste. Desculpa, não estou mesmo a facilitar as coisas. Estavas intrigado comigo, não é verdade? Pois bem, primeiro de tudo, chamo-me Célia e tenho estado a vigiar a entrada do meu apartamento. Acho que o meu ex-marido vai lá quando eu não estou.
-        Então pode estar lá agora, não? Fiz-te abrandar a vigilância ao trazer-te aqui…
-        Nãã. Não te preocupes, já há três dias que vigio a espaços e não o apanho. Ou já desistiu ou sabe que estou à espreita…
-        Bem, eu já reparei em ti há alguns dias.
-        … ou eu sou um desastre como detetive.
-        Pois…
-        Se calhar é isso, não é? Também acho que não me devo importar mais com isso, aliás, ele nunca levou nada, nem nada.
-        Então que vem lá fazer?
-        Acho que quer saber se vem lá algum homem e quer descobrir provas… Mas chega de falar de mim. E tu? Que fazes quando não andas a tropeçar em “miúdas simpáticas” na rua?
-        Eu? – Reagiu surpreendido – Bem, chamo-me Miguel e sou eletricista de automóveis, mas estou desempregado.
Novamente os olhos semicerrados.
-        Queres dizer que ou foste despedido ou saíste da cadeia há pouco.
Ele estremeceu com a certeza da “pancada” e disfarçou com um sorriso amarelo:
-        Que te faz pensar isso? És telepata?
-        Não, tolinho. “Palmar auto-rádios”? Parece-me uma boa pista.
-        É, não fui muito inteligente. Mas também não esperava uma “lata” tão grande da tua parte a “mandar-me” logo com essa.
-        Lata, eu, é? Pois, até fui eu que meti conversa contigo.
-        Mas não foi por isso que “fui dentro”. Havia um “chavalo” que lhe tinham caído no bolso umas gramas mais do que as que precisava. Por isso, achou que meter a mercadoria na minha mochila quando os “bófias” chegaram, era uma boa ideia.
-        Pois. É preciso ter “galo”, ou fracos amigos. E se calhar não consomes nem nada. Não tens aspeto disso. Eu tinha-lhe “dado cabo do canastro” em dois tempos.
-        Bem tentei na altura. Mas os “bófias” não colaboraram e agora é tarde que ele já “bateu as botas”. Uma overdose.
-        Acontece aos melhores. Eu nunca me meti nessas merdas.
-        Nem eu, mas por vezes a gente vê-se nelas.
A mão dela tocou na dele sobre a mesa e olhou demoradamente o singelo anel que brilhava:
-        Ouro?
-        Sim. – Acedeu – Toda a minha riqueza. Um anel que o meu pai não conseguiu deitar a mão para vender após a morte da minha mãe. Também não vale muito.
Ela levantou-se lentamente deixando-o acompanhar o seu corpo com os olhos:
-        Vou para casa.
-        Nem falamos muito. Não te soube bem falar um pouco?
Aqueles olhos profundos emolduraram-se com um sorriso que o fez oscilar enquanto se levantava também.
-        É. Acho que também estava a precisar de falar um pouco. Queres vir tomar qualquer coisa mais quente que esta miserável desculpa para café?
O rosto dele iluminou-se e os seus olhos pareceram ganhar uma vida e um brilho que estavam escondidos bem fundo:
-        Está bem. De certeza que não queres mais nada daqui? – Interiormente encolheu-se com a possibilidade de uma resposta positiva.
-        Não. Acho que não. De qualquer forma não devemos de afetar ainda mais as tuas (suponho) já frágeis economias. – Aquele piscar de olhos derreteu-lhe o coração fazendo-o bater mais forte – Senta aí um pouco e dentro de 5 minutos sobes a minha casa. É o 172, 3º Direito, a porta de baixo está só encostada e a do apartamento tem a fechadura forçada. Ontem tive visitas indesejáveis.
Ele continuou em pé ainda atordoado com a proposta.
-        Senta-te – continuou ela – não quero que nos vejam a subir juntos. O meu ex pode ainda andar por aí. Cinco minutos, ok?
Sentou-se e ficou, sem uma palavra, a olhar aquele corpo bem torneado que se adivinhava debaixo da capa amarela afastando-se a decididos passos largos.
Assim que lhe pareceu, levantou-se e dirigiu-se para a porta deixando algumas moedas na mesa.
Caminhou rente às paredes, para evitar molhar as suas já encharcadas roupas e aproximou-se do nº 172.
Quase a medo e tentando não perder de vista toda a área envolvente, empurrou a porta que cedeu sem qualquer dificuldade.
O prédio já não era novo e ainda que não estivesse maltratado, agradecia uma boa pintura. O corrimão da escada, que começou a subir pé ante pé, estava quase solto.
-        Terceiro direito – Sussurrou para si próprio ao chegar ao patamar e olhando a fechadura obviamente forçada.
A porta abriu-se, antes da sua mão ter tempo de lhe tocar, enquanto um braço o agarrava e puxava para dentro rapidamente. O rosto sorridente de Célia quase colou no seu.
-        Ena, quase me sinto raptado. – Gracejou Miguel enquanto a porta batia atrás de si.
-        Não quero que te vejam aqui. Os meus vizinhos são muito coscuvilheiros e já tenho problemas que me bastem.
Os olhos dele percorreram rapidamente o hall e o mobiliário que o decorava enquanto pensava – É, decididamente a garota tem “pasta”, pode ser uma boa.
-        Agrada-te? – Perguntou ela notando a atenção dele.
-        Sim, sim, bastante acolhedor. Um dia gostaria de ter uma casa assim…
-        Tens de “dar o corpo ao manifesto”, honestamente claro, porque a fugir da lei não se consegue ter nada.
-        Pareces versada no tema…
-        Não. É apenas um facto que toda a gente sabe, mas alguns não querem aceitar. Vamos ficar aqui na entrada? – Disse indicando a porta da cozinha - Queres tomar então uma bebida quente? Um café, um chá? Leite?
-        Outro café ia bem, aquele não estava muito quente e hoje até fazia jeito.
Entraram na cozinha impecavelmente arrumada e uma vez mais, o olhar atento de Miguel percorreu todo o mobiliário enquanto ela parecia procurar algo nos armários.
As portas abriam e fechavam rápida e silenciosamente até que ela confessou – Não sei onde para o café. Não percebo nada desta cozinha pois a minha empregada é que trata disto tudo…
-        Pois, os inconvenientes de ter empregada. – Gracejou – Já experimentaste na dispensa? Assumindo que tens uma.
-        Claro, que estúpida sou. – E saiu do aposento deixando-o sozinho.
A máquina do café estava ligada pelo menos. – Os seus pensamentos flutuavam – Tudo muito limpo muito arrumado. Empregada. E ele que vivera sozinho tantos anos, realmente os homens são um desastre no que toca a arrumação.
-        Achei. – Sobressaltou-o ela empunhando um pacote de café, vitoriosa – Mas senta-te aí à mesa enquanto eu trato disto.
Obedeceu enquanto a observava, de costas. Era realmente bem feita, cintura fina, nádegas arredondadas, ombros bem proporcionados… Pena ter de se “abotoar” ao que houver à mão e “dar de frosques” rapidamente.
O cheiro do café começou a encher o ambiente, aconchegante.
Ela voltou-se com duas chávenas fumegantes que pousou na mesa. Ele não pode deixar de reparar, sob a cor tijolo da camisola de lã, o contorno de uns seios pequenos mas apetecíveis.
-        Aqui está. Espero ainda ter alguma prática nisto. – Desejou sentando-se à sua frente.
-        Cheira bem, pelo menos e as chávenas estão quentes. – Afirmou enquanto adoçava a bebida.
Fez-se um silêncio constrangedor enquanto ambos bebiam.
-        Está ótimo. – Elogiou ele – Mesmo quente como eu precisava.
-        Ainda bem que gostas. Estava com medo de já não o saber fazer. – Levantou-se, pegou na sua chávena e aproximou a mão da dele – Já está?
-        Sim, obrigado. – Estendeu o recipiente e ambas as mãos se tocaram deixando-os estáticos por segundos.
Ela rodou rapidamente, colocou a louça no balcão e tornou para junto dele, que continuava sentado. Aqueles seios ficaram perigosamente perto do seu rosto.
-        Vamos até à sala um pouco? – Convidou olhando-o de cima para baixo com um sorriso maroto.
-        Está bem. – Ele levantou-se lentamente com os olhos fixos nos dela.
Célia pegou-lhe na mão e puxou-o até à sala junto do sofá de couro preto.
Também ali o olhar perscrutador circulou em toda a volta do aposento decorado de forma moderna em tons branco, preto e prata. Até se fixar nela.
Estavam os dois parados, em pé, um em frente ao outro, com uns escassos centímetros de distância.
Ela foi a primeira a reagir e empurrou-o para o sofá onde ele se sentou desamparado embalado pelo som de uma gargalhada musical.
Miguel agarrou-a e puxou-a para o seu colo. Aproximou o rosto do dela e inspirou o doce perfume que a envolvia, ligeiramente misturado com o hálito a café que saía da boca entreaberta.
Beijaram-se com sofreguidão. Línguas em fúria procurando a supremacia, tentando subjugar a outra. Braços e mãos, lutavam, enroscavam-se, um tentando tirar a roupa ao outro.
A força dele foi decisiva, erguendo-se com ela ao colo, ainda de bocas coladas e deitou-a de costas por baixo dele.
Camisolas voaram para o chão e o soutien soltou-se expondo o mais apetecível par de seios que ele já tivera ao alcance; pequenos mas fartos, mamilos rosados e perfeitamente eretos pedindo para serem acariciados e beijados…
Ele não se fez rogado e cobriu-os de beijos enquanto as suas mãos exploravam cada curva e testavam a sua dureza.
As mãos dela também não sossegavam, ora envolvendo os dedos no seu cabelo, ora entrando pela camisa desapertando mais um botão acariciando o peito coberto de pelos.
Também a camisa dele foi para o chão, acompanhada rapidamente do resto da roupa de ambos.
O jovem pôde então desfrutar da visão completa daquele corpo maravilhosamente firme que se expunha convidativamente ante seus ávidos olhos. Aí estava uma fonte de inspiração para um qualquer Boticelli. Rosto belo, seios fartos, ancas largas de curvas suaves.
Lutaram alternadamente pela supremacia e pelo prazer de dominar o parceiro.
Durante muito tempo desfrutaram do prazer imenso que os seus corpos proporcionaram até caírem nos braços um do outro. Esgotados e sonolentos sentiram a bem-vinda inconsciência chegar…
                                              
O toque do telefone insistia e Miguel recusava-se a aceitar que o devia atender.
A irritante campainha não se calava até que ele saltou, completamente desperto.
Continuava nu, embora coberto com uma manta, deitado no sofá de cabedal preto duma casa estranha. Sozinho.
E o telefone continuava a tocar na mesa ao lado do sofá onde estava um papel com uma palavra escrita:  “Atende.”
Levantou o auscultador, receoso e a voz de Célia ecoou do outro lado da linha, trocista:
-        Até que enfim ó dorminhoco! Isso é que é dormir, o telefone já toca há perto de dez minutos.
Reparou que todas as gavetas que conseguia ver na sala estavam abertas e seu conteúdo espalhado pelo chão.
-        Onde estás? – Conseguiu articular
-        Longe. – Riu – Já tenho o que quero e tu foste um amor em proporcionar-me um bom acompanhamento.
-        Não percebi.
-        Escuta meu querido, eu estava a vigiar essa casa há já vários dias para detetar se havia ou não movimento para lhe fazer uma visitinha. Os donos estão para fora, sabes?
-        Quê?
-        É isso mesmo, somos colegas. Tu contentas-te com auto-rádios e eu quero voos mais altos. De qualquer modo foste um amor, e muito competente.
-        És louca? Trouxeste-me para uma casa que não era tua e entraste nestas “cenas” aqui sem qualquer problema de poder ser surpreendida… Foste tu que forçaste a fechadura?
-        Claro meu querido, sou uma profissional. Há que viver perigosamente para que esta vida tenha algum sabor.
-        Decididamente és completamente louca. Onde estás, posso ir ter contigo?
-        Não me parece. Foi muito bom mas é melhor ficarmos por aqui. Pode ser que um dia os nossos caminhos se voltem a cruzar.
-        Espera.
-        Não. E tu também não devias esperar, alguém pode achar que há muito barulho num apartamento vazio e chamar a Polícia. – Soltou uma gargalhada contente consigo própria – Aproveita e vê se há alguma roupa melhor que esses trapos que trazes. Um beijo e até nunca. Ah, é verdade, estive para te “gamar” o anel mas tive pena... acho que estou a ficar velha. Xau!
A chamada desligou-se.
Furioso, atirou com o auscultador.
-        Parece impossível – Rugiu com os seus botões – Agora sei o que quer dizer seduzido e abandonado.
Acabou por dar uma boa gargalhada contente com o que acabara de dizer.
-        Maldita gaja. Tanto de boa como de louca… Muito mais boa aliás…
Dez minutos depois abandonava o apartamento saqueado, já de roupa nova, com uma mochila às costas e com cinquenta euros no bolso que Célia esquecera na mesa da sala.
Fora uma aventura e tanto e, enquanto saía do prédio, desejava ardentemente que o destino se voltasse a cruzar com aquela mulher. Ela, tão ardente quanto carinhosa, conseguiu frustrar os seus intentos e fazer-lhe aquilo que ele gostaria de fazer a ela.
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1 comments:

redonda disse...

Gostei muito. Prendeu-me o interesse e não acabou mal :)
Gábi

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