quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O último dia do verão


O último dia do verão...
O sol põe-se lentamente
Tingindo de vermelho fogo
As negras nuvens que dominam o céu.
Uma vez mais, lado a lado
Conversamos como bons amigos...
Que somos.
E eu mal te toco,
Temendo que te desvaneças,
Porque te toco
E temendo que te vás
Porque não te agarro.
E o ultimo dia do verão vai-se lentamente,
Criando em mim
Uma sensação de vazio e perda.
A terrível certeza que
"Amanhã será sempre tarde de demais"
E que eu estou destinado a não te ter.
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terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Reencontro



O pânico tomava conta dele enquanto fugia espavorido, na penumbra, pelo corredor aparentemente sem fim.
Fugia, mas não sabia de quê e sentia o coração bater descompassadamente, como se estivesse prestes a sair-lhe pela boca enquanto, desesperado, corria. Não sabia do que fugia, mas sabia que era a única maneira de salvar a vida.
Por várias vezes parou e olhou para trás, na ânsia de conseguir divisar um perfil, uma sombra daquilo que o perseguia, daquele ódio mortal que se pressentia, mas não se via.
Mesmo não vendo nada, continuava apavorado e retomava a sua corrida insana em busca do fim do corredor que não aparecia nunca.
Tropeçou...
Caiu de borco com violência e o sabor ferroso do sangue pousou-lhe sobre a língua, vindo do lábio rebentado pelos dentes. Por uns aterrorizantes segundos, de olhos esbugalhados, quase sentia mãos medonhas e descarnadas a agarrá-lo pelo pescoço com violência.
Não acontecendo nada, não se atreveu sequer a olhar para trás e retomou a corrida desenfreada.
Sentia-o cada vez mais perto; parecia ouvir o seu respirar ofegante junto das  costas e o eco dos passos em uníssono com os seus. Sem ver, sentia que ele estava quase a tocar-lhe. Preparava-lhe um fim atroz.
Tropeçou novamente e enrolou-se numa queda desamparada pelas escadas, que repentinamente surgiram à sua frente, enquanto um grito rouco de pavor se lhe escapava da boca.
Estava deitado na cama… completamente encharcado em transpiração. Gotas de suor corriam livremente pelo seu rosto enquanto se soerguia e, lentamente, identificava os móveis e a disposição do quarto como sendo da pensão onde se alojara naquela mesma noite.
Deixou-se cair de costas sobre a travesseira molhada e assim ficou ,  sentindo o suor frio dos lençóis de encontro ao seu corpo arfante. O coração a batia como louco, ecoando em furiosas pancadas dentro da cabeça.
Era o sonho...
Era novamente o maldito do sonho que o vinha atormentando desde que tomara a decisão de regressar ali.
Inspirou profundamente várias vezes para regularizar o ritmo cardíaco e sentou-se devagar na borda da cama. Pousou os pés ferventes, fora do tapete, sobre o agradável chão de tijoleira fria. Deixou cair a cabeça sobre as mãos numa atitude de desespero. Não dormira quase nada nas últimas noites. Aquele pesadelo, repetitivo, não o deixava descansar e o medo que voltasse não o deixava tornar a dormir.
Seu nome é António;  fará na próxima noite um ano que estivera naquela cidade perdida no Alentejo, onde aconteceu o seu encontro com o inexplicável.
Caminhou pelo quarto… Aquele mesmo quarto de há um ano atrás.
Viu as horas no telémovel… Quatro horas e trinta minutos da madrugada do dia vinte e oito de setembro de 2007…- Vai fazer logo à noite um ano que a encontrei… e que não mais a esqueci, tornando-se uma obsessão.- Pensou com melancolia.
Abriu, de par em par, a janela que até aí estivera entreaberta e contemplou a pequena e ainda familiar praça deserta. O enorme buraco que a Companhia das Águas abrira durante a sua anterior estadia já havia sido tapado e os cestos de papéis, que existiam rodeando o jardim do centro da praça, foram mudados. Tudo o resto estava na mesma, até a relva continuava bem necessitada de alguma chuva, visto que devia ser regada poucas vezes.
Corria uma aragem fresca com humidade, ameaçando enregelar o seu corpo que colava de transpiração. Nada parecido com o ano passado e o calor abrasador que se fazia sentir.
Arrepiou-se. A pele dos seus braços eriçou-se ao mesmo tempo que estremecia.
Decidiu  tomar um duche bem quente para se sentir um pouco mais confortável.
Saído do banho, sentou-se de novo na cama indeciso entre tentar dormir novamente e ser visitado uma vez mais pelo tenebroso pesadelo ou vestir-se e sair vagueando pela cidade adormecida… A segunda hipótese pareceu vencer quando se vestiu em gestos fluídos, terminando com uma calça bege  e uma camisa azul-marinho que lhe realçava a palidez do rosto macilento e dos olhos marcados pelas noites sem dormir.
Chegou ao exterior do edifício e fechou os olhos absorvendo a aragem fria do Norte que era a única coisa aparentemente móvel em todo o cenário.
Começou a andar, distraidamente, como se pretendesse vaguear, mas a sua mente sabia bem onde o seu coração o queria levar e os passos foram-se alargando e acelerando, gradualmente, até se tornarem num trote rápido.
Chegou ao portão do cemitério. Ali estava ele, enorme como bem se lembrava, com a inscrição em latim semiapagada no topo. Hesitou. – Não é agora a hora. – Disse para si próprio, como se outra pessoa lhe pusesse as palavras na boca.
Mesmo assim, empurrou-o com força, acompanhado pelo lamento dos ferros que não viam óleo há muito tempo, e entrou.
Uma inundação de recordações envolveu-o numa tontura de prazer e tristeza enquanto sentia, uma vez mais, o ar mais frio dentro de muros. Era como se os corpos gélidos que ali se encontram absorvessem todo o calor, o calor do mundo inteiro, mantendo a atmosfera tão morta como eles. A sensação de irrealidade tomava-o enquanto caminhava, em passos temerosos, para aquele local que não abandonava os seus sonhos e de que guardava memória de cada pormenor.
Não havia luar; as nuvens tapavam a lua e a luz dos altos candeeiros da rua quase não conseguia romper as trevas ali existentes. As estátuas e as pedras tumulares não passavam de contornos nas sombras que mal se conseguiam distinguir. Mesmo assim, sem hesitação, chegou ao local.
Ali estava o Serafim Vingador sobre a campa que parecia irradiar luz. O mesmo local onde encontrara Susana no ano anterior. O mesmo sítio onde encontrara aquela mulher que o marcara de uma maneira tão fatal e tão definitiva que, por vezes, duvidava que tudo aquilo não passasse de um sonho louco de uma mente atormentada pelo calor e pela falta de sono.
Poderia ter sido uma alucinação, um sonho? Como conseguiria ele imaginar aquela mulher que nunca vira e descortinar os pormenores da sua vida com tanta certeza, se não a tivesse visto... falado… e tocado por ela.
Agora que ali estava, no local onde tudo aconteceu e onde achava que iria acontecer novamente, perguntava-se se seria sensato procurá-la.
Sentou-se no chão, ao lado da pedra tumular e encostou a cabeça olhando o alto. A cabeça do anjo vigiava, recortada contra o escuro do céu, sendo essa a última imagem que reteve antes de adormecer.
Quando tornou a abrir os olhos sentia-se gelado e tinha o corpo todo dorido; o pescoço, as costas, as pernas, todo ele era uma dor só devido ao pequeno sono que dormira encostado à pedra.
Para ajudar, uma pequena chuva “morrinhenta” tinha começado a cair e ele estava coberto de pequenas gotas que lhe escorriam do cabelo curto e principiavam a entrar na roupa.
Ergueu-se a custo, gemendo, e ficou um pouco em pé a recuperar a força nas pernas enquanto sacudia as irritantes gotas da roupa.
Deitou um olhar desiludido em volta e fixou-se no Serafim que parecia  olhá-lo desafiadoramente. Encolheu os ombros enquanto a sua atenção se mudava para a parte mais distante do cemitério, ao fundo, na parede onde, segundo Susana, fazia fronteira a casa dela que vira em ruínas no ano passado.
A sua determinação começava a vacilar e a consciência do que procurava começava a sobrepor-se ao desejo de a ver e abraçar… a noção de que o que procurava podia ser um simples sonho que não iria voltar… ou que se poderia, a qualquer momento, tornar um pesadelo do qual não conseguiria sair…
Começou a caminhar para o fundo do cemitério, não sem antes deitar um olhar de soslaio ao anjo que parecia segui-lo com o olhar.
Chegado ao enorme muro, examinou-o por entre as trepadeiras que o invadiam, dominadoras, até encontrar o pequeno portão de ferro todo tapado pela vegetação. Através da grade conseguia ver uma pequena viela que possivelmente desembocaria na praça da igreja. Era por ali que ela entrava, por aquela porta abandonada há dois anos e que a vegetação reclamou para si.
Abanou o portão com força, mas, apesar de dar mostras de ceder, os ramos da trepadeira agiam como cordas, prendendo-o. Mais uns puxões e conseguiu libertá-lo o suficiente para entreabrir uma fresta e poder passar.
O outro lado estava limitado à direita e à esquerda por enormes muros, de mais de três metros, das quintas vizinhas do cemitério e tinha pouco mais de dois metros de largura por uns cinquenta de comprimento. O chão, empedrado com grossas lajes, estava aqui e ali, enfeitado com respeitáveis tufos de erva que rompiam, tenazmente, entre elas.
Atravessou a viela com especial atenção a qualquer coisa de interessante que existisse nas paredes para além dos inevitáveis grafittis. Nada encontrou.
Como imaginava, deu por si no extremo da praça dominada pela igreja e pejada de tendas da feira medieval que estava a decorrer, na altura. Àquela hora, espreitou o telemóvel que lhe indicou serem sete da manhã, as tendas ainda estavam todas imóveis e com as entradas tapadas.
O muro à sua direita, onde se situara a casa de Susana, terminava abruptamente no vazio. O local onde, no ano passado, existiam as ruínas calcinadas, era agora um terreiro completamente rapado onde estava montada uma única tenda isolada. Era uma réplica perfeita das tendas medievais e não faltavam à porta um escudo brasonado suspenso numa espada cravada num cepo de madeira.
Algumas pingas do chuvisco, que entretanto parara, caíam das borlas que rodavam a tenda.
Aproximou-se, fitando o olhar nas paredes do fundo do terreno ainda ostentando o negro do fogo violento que tudo destruiu.
Estava a dois passos da tenda, quando, a cortina que a fechava, abriu-se para o lado num movimento brusco. Uma mulher de estatura média, curvada sob a entrada e com uma enorme cabeleira negra  desgrenhada, quedou-se imóvel segurando a cortina e observando-o.
Olharam-se fixamente, mediram-se indecisos, até que ela quebrou o silêncio com uma voz muito mais jovem do que seria de supor:
-        Disseram-me que vinhas.
Ele assumiu uma expressão divertida:
-        Quem?
-        Quem, o quê?
-        Quem te disse que eu vinha? Sabes quem sou eu?
Contrariada, ela olhou para o lado, antes de o enfrentar novamente e responder:
-        Não preciso saber quem és. Sei ao que vens e avisaram-me da tua chegada… - Por entre o cabelo, os olhos dela faiscaram. – A tua descrença fede.
-        Ah sim? – Interrogou desafiador – Não sou muito crente nestas coisas, é verdade.
-        E no entanto… – Sentenciou – …vieste de muito longe em busca de algo em que não deverias crer… e se calhar nem procurar.
-        Que sabes tu do que vim procurar? – Um tom de alarme sentia-se na voz dele. Diz-me quem te falou, se ninguém sabia que eu vinha.
-        Não sei o que buscas, apenas sinto. Procuras algo muito importante para ti, que desejas e temes… Quem me avisou… há muita coisa que eu sei, sem saber como o sei. De repente, foi como se me dissessem ao ouvido; “Ele chegou, está lá fora”. Abri a cortina e aí estavas tu.
Um silêncio pesado caiu entre eles. Ele tentou assimilar a revelação,  pensando até que ponto poderia acreditar naquela estranha criatura que tanto parecia uma velha como uma jovem, vestia como uma cigana e falava como uma portuguesa comum.
-        Entra. – Ela convidou, afastando-se para o interior e mantendo a cortina levantada, mostrando-lhe o chão atapetado com um liteiro multicolor.
Hesitou, sem desviar o olhar dos olhos que lhe reluziam. Deveria aceitar o convite de uma mulher que não conhecia de lado nenhum para entrar na sua tenda? Não estaria a candidatar-se a ser morto e roubado?
-        Não está aqui mais ninguém e dinheiro, dar-me-ás algum se assim o entenderes. - Ela falou numa voz suave e pausada como se tivesse adivinhado as suas dúvidas… ou escutado os seus pensamentos.
Mas foi o suficiente para se decidir e, curvando-se, entrou na tenda.
A cortina foi simplesmente largada, deixando todo o espaço envolto numa penumbra perturbada por imensos raios de luz cruzados, reluzentes de milhares de partículas de pó, projetados pelos inúmeros pequenos furos existentes por toda a cobertura. Um ar quente e abafado indicava que ela acordara há pouco tempo e fê-lo olhar para o emaranhado de cobertores, no chão, ao lado de alguns montes de roupa cuidadosamente dobrados.
Ali, ao pé dela, já conseguia ver que era um pouco mais pequena do que ele.
Num movimento fluído, quase gracioso, ela rodopiou para trás da mesa que ficava exatamente no meio da tenda e, com a palma da mão voltada para cima, indicou-lhe o pequeno banco do outro lado.
Como ele hesitava, ela falou num sussurro onde se notava o sorriso:
-        Senta-te. Está sossegado que não te como. Vou tentar descobrir que recados te querem dar.
Obedeceu. Ficou sentado olhando-a de frente, com as mãos pousadas no colo e os joelhos apertados, numa óbvia atitude de tensão.
Em gestos teatrais, ela passou as mãos pelos cabelos deixando ver algumas madeixas loiras por entre o negro e, quando pousou os braços na mesa, havia-se materializado, na sua mão esquerda, um baralho de cartas já envelhecido pelo uso.
-        Põe os braços estendidos sobre a mesa afastados dois palmos um do outro. - Obedeceu ao pedido, enquanto tentava espreitar o rosto oculto pelo cabelo comprido e negro.
Estava ainda surpreso pela forma como aquela estranha mulher  o abordara.
De forma rápida e profissional, murmurando o que parecia ser uma prece, ela dispôs as cartas por toda a mesa em três filas recolhendo-as, novamente, com apenas três gestos de arrasto cruzados.
Em seguida, sempre murmurando, colocou três cartas de face para baixo, no espaço entre os braços dele.
A mulher levantou finalmente o rosto para ele e calou-se repentinamente. As faces continuavam praticamente ocultas pelo cabelo cor de carvão, mas, entre ele, conseguia-se distinguir os olhos azuis que faiscavam.
Ergueu um dedo ao nariz pedindo silêncio, voltou o olhar para a mesa e pousou as mãos sobre as dele como que para dar confiança, antes de recomeçar a ladainha. Durante uns segundos, ele sentiu os dedos gelados apertando até que ela o soltou com novo gesto brusco.
Voltou a primeira carta; mostrava um homem com um bordão, uma longa capa que lhe cobria a cabeça e uma lanterna que parecia iluminar-lhe o caminho.
Ela calou-se novamente e sussurrou numa voz suave, mas rouca, nada parecida com aquela com que o  convidara a entrar:
-        O Eremita. Precisas de Luz e de te encontrar a ti mesmo, isolamento para pensares no que se passa ou no que passou, precisas de paz de espírito.
Os olhos azuis intensos fitaram-no novamente, antes de retomar a ladainha e apertar as mãos geladas nas dele.
Voltou a segunda carta: Um homem erguendo o que parece ser um bastão, com o símbolo do infinito sobre a cabeça e um pentagrama e vários objetos sobre uma mesa.
Calada a oração, aquele olhar, ao mesmo tempo quente e frio, sensual e analítico, em conjunto com a voz profunda, hipnotizava-o:
-        O Mago. Contradiz-se com a primeira carta. Diz que estás pronto, tens a Força e o Conhecimento para a dominar. É tempo de agir e usar estas armas poderosas.
Aproveitando os segundos de interrupção em que ela o fitava, ele interpelou:
-        Mas quem é você? Porque me fez entrar aqui e porque me está a dizer isto? Que sabe sobre o que tenho ou não de  fazer, sobre as decisões que tenho ou não de tomar?
Por trás da cortina que é o cabelo dela conseguiu-se adivinhar um sorriso de escarninho, antes de sussurrar:
-        Eu nada sei, sou um mero instrumento das forças que dominam o universo e te fizeram vir até mim para te iluminar o caminho. - Por um instante, os olhos pareceram mudar de cor e de brilho, como se perdessem toda a luz, revelando uma idade e um conhecimento muitas vezes superior ao dos Homens. – As palavras são-te dadas, os caminhos apontados, as decisões e as consequências serão tuas apenas.
Olhou-a desconfiado, por uns segundos, e ela devolveu-lhe o olhar intenso, por entre o cabelo desgrenhado, antes de se debruçar sobre a mesa, aproximar o rosto do seu e sussurrar num hálito fresco:
-        Falta uma carta…
-        Chega! – Ele exigiu levantando-se. – Não quero nada disto. Vou-me embora. - Saiu da tenda atirando com a cortina e afastou-se rapidamente, a passo largo, na direção do corpo central da praça, pejada de tendas.
A vidente correu até ao exterior, trôpega, como se tivesse acordado de um sonho e gritou–lhe empunhando uma carta solitária:
-        Espera! Não queres ver a última carta? É importante. – E com a voz a sumir-se concluiu quase de si para si – Não sabes o que te espera…
Quase a medo, olhou para as costas da carta e, muito lentamente, voltou a face para si.
Representava um demónio, com enormes chifres retorcidos, sentado num trono com os pés presos por correntes ao Homem e à Mulher que choram a maldição.
A cartomante fez uma expressão triste e, força do hábito de anos, explicou para si própria o significado:
-        O Diabo. Seja qual for a teia em que te envolveste, já não a consegues controlar e estás nas mãos do Destino. O que tiver de ser há de ser, quer o queiras quer não… Que a Fortuna te proteja e Deus te não desampare.
Com esta sentença deu meia volta e regressou à tenda.
António, por seu turno, atravessava a praça e, já mais calmo, olhava demoradamente a profusão de cores e padrões existentes em cada uma das tendas e bancadas. Um segurança cruzou-se com ele, deitando-lhe um olhar desconfiado.
O relógio da torre da igreja soava as oito horas e algumas das tendas mostravam já atividade. Havia gente que chegava para as abrir ou que saía do seu interior, ainda com sono.
A chuva recomeçava a cair em gotas tão leves que mais pareciam flutuar.
Chegou à entrada da igreja e tentou abrir a porta que estava bem fechada. Olhou em volta a ver o crescendo de pessoas que, apesar da chuva, tomavam conta da praça.
Sentia frio e as roupas molhadas no corpo não ajudavam. Começava a tremer, quando o seu olhar se fixou no café situado na esquina de uma das ruas que desaguava na praça. Já estava aberto e um homem baixo e careca, a fugir para o gordo, observava-o desde a esplanada. O pano de limpar as mesas estava pendurado num dos bolsos e os braços cruzados sobre a barriga não ocultavam a sua curiosidade.
Encaminhou-se para lá e saudou-o:
-        Bom dia!
-        Bom dia! – Respondeu-lhe numa voz grave, queimada pelo álcool, pelo tabaco, ou quem sabe, por ambos. – O padre Miguel ainda não abeirou por aí. Mas não tarda, que ele é bicho madrugador.
António sorriu com a simplicidade do homem:
-        Pode servir-me um café bem quente, por favor? É que eu estou gelado. Esta chuva já me molhou todo.
Ele mirou-o de alto a baixo e fez meia volta dirigindo-se para o balcão:
-        Claro, claro. É para já. – António seguiu-o para o interior do estabelecimento, enquanto ele continuava a falar sem se deter. – Este tempo engana muito, por isso não devemos sair sem chapéu de chuva, não é à toa que se chama “molha-tolos”. Quem for tolo o suficiente para sair sem se precaver…
-        É verdade. – Concordou António. – E eu estou a ser tolo quanto baste…
Mas o que quer do padre Miguel? – A curiosidade venceu o falador empregado, enquanto pousava o café fumegante e os cotovelos no balcão. – Vem marcar casamento? – Mas ao ver o ar cansado e enfermiço do jovem, compôs – Ou funeral?
António sentou-se num dos bancos do balcão:
-        Como sabe se quero falar com o padre?
-        Não sei, mas foi experimentar a porta da igreja, é a casa de Deus eu sei, mas Ele não costuma cá estar e quem a governa é o padre... - Piscou-lhe um olho maroto.
-        Na verdade não lhe quero nada. - Sorriu com a brejeirice. - Ia apenas sentar-me um pouco na igreja para meditar na minha situação… Rezar, talvez.
-        Problemas de família?
-        Não… Prefiro não falar nisso, desculpe, sim?
-        Claro, claro! Desculpe a minha curiosidade, mas é mais forte que eu. Quando dou por mim, estou a falar pelos cotovelos, não deixo os outros falarem e não paro de fazer perguntas… Mas você até não é de cá. De onde conhece o padre Miguel? – Ao ver o ar divertido do forasteiro, caiu em si. – Ups, lá estou eu outra vez.
-        Não conheço o padre Miguel, a menos que seja o mesmo que estava aqui no ano passado, com quem falei de relance. E sim, sou de fora. Estou de passagem.
-        No ano passado? Sim… Acho que me estou a recordar, sim. Esteve ali, do outro lado da praça a falar com ele… Bem que você não me parecia um completo estranho.
Uma expressão de preocupação passou como uma nuvem sombria sobre o rosto de António:
-        Isso é que é uma memória! E o padre disse-lhe do que falávamos?
O empregado tirou uma garrafa de whisky e dois copos debaixo do balcão e enquanto os enchia, sem o fitar, foi dizendo:
-        Vamos beber um golo disto que, isto sim, mata o frio de quem tem que se levantar cedo com este tempo… ou nem dormiu de todo. - Novamente o piscar de olhos conhecedor.
Um pouco apreensivo por beber assim tão cedo, ergueu o copo que recebeu um pequeno toque do outro, ao jeito de brinde:
-        À nossa! – Exclamou o empregado bebendo de um só gole para em seguida o olhar fixamente. – Beba, beba, não se preocupe, é oferta da casa.
Ele bebeu um pequeno gole e insistiu:
-        Mas que lhe disse o padre Miguel?
O homem fez um ar desolado quando confessou:
-        O nosso padre é uma raposa matreira e já me conhece há muitos anos.  Sempre que começo com muitas perguntas, diz-me a sorrir: “Fernando, Fernando, a coscuvilhice é uma coisa muito feia. Aquilo que as pessoas me dizem em conversa ou em confissão fica entre mim, elas e o bom Deus.”
Não pôde evitar sorrir e a verdade é que a bebida e o café tinham mesmo despertado algum calor nele. Assim que pousou o copo vazio, o homem colocou mais um pouco.
-        Espere. – Pediu António – Acho que não bebo mais.
-        Bebe sim! - Encorajou Fernando. – Quanto mais não seja faz-me companhia.
Acabou por beber...
As horas passaram-se e a garrafa estava perigosamente perto do fim… Falaram de imensas coisas, mas o tema, a razão do seu regresso ali, não foi tocado. O anfitrião, tão ébrio como António, acabou por trazer algumas coisas para comer, “mais ofertas da casa” e assim se foram um chouriço, umas fatias de presunto, uns bons bocados de pão e, claro, uma garrafa de vinho alentejano.
Sentia a cabeça  andar à volta, estava um pouco agoniado e os seus ouvidos estavam tomados de um zumbido permanente que tornava difícil ouvir. O sono atrasado de dias, pesava-lhe agora nos olhos, encorajado pelo álcool.
Decidiu que já chegava de “sociedade”. Agradeceu imenso ao seu anfitrião, que o obrigou a jurar que voltaria e pousou algumas moedas no balcão… Ainda não seria desta que o pobre Fernando saberia a razão da sua estadia ali.
Com passos hesitantes, abandonou o estabelecimento.
A chuva caía copiosa mas ele não se importava, enquanto se dirigia para a igreja que entretanto já se encontrava aberta… Estivera no café perto de três ou quatro horas… E já tinha bem a sua “conta”.
Havia bastante gente, abrigada sob os guarda-chuvas, a circular entre as tendas.
Entrou no templo. Não era grande e estava exatamente como se lembrava. Dirigiu-se para um dos bancos laterais, meio oculto nas sombras e sentou-se.
Estava a ficar mal disposto; tudo parecia andar à sua volta ao mesmo tempo que o zumbido parecia tornar-se ensurdecedor. Encostou a cabeça na coluna e adormeceu imediatamente.
-        Amigo. Hei, amigo! – A voz vinha de muito longe, enquanto ele abria os olhos com dificuldade. – Vamos  acordar, isto é a casa do Senhor, não é nenhum albergue!
Já com os olhos bem abertos, reconheceu o padre Miguel. Só que o seu semblante não mostrava a simpatia de que ele se lembrava.
-        A dormir na igreja? – Continuou ele – Não me faltava mais nada! Ainda se não ressonasse…
O padre não dava ares de o reconhecer pelo que, por vergonha, António também não se revelou e, mantendo a cabeça baixa, murmurou umas desculpas, abandonando  o edifício como se fosse  um mendigo surpreendido a dormir na missa.
Os sintomas da embriaguez tinham sido substituídos por uma incómoda  sensação de leveza e a roupa molhada deixara-o completamente gelado.
Cá fora, já começava a anoitecer e a chuva parara. Dormira umas boas horas lá dentro, o dia passara-se sem que desse por ele.
No café da esquina, Fernando estava a sair do edifício para se ficar debaixo do toldo da esplanada, como parecia ser o seu hábito. António escondeu-se, rapidamente, para que o não visse e afastou-se, em passos largos, pelo lado contrário da praça, oculto pelas tendas iluminadas e já com poucos clientes.
Acabava-se o dia e aproximava-se a hora que ele esperara durante tanto tempo… e que começava a temer.
Passou ao largo da tenda da cartomante. Ela não estava à vista, mas havia luz no interior.
Contornou o muro sobrevivente da propriedade incendiada e enveredou pela viela entrando no cemitério por onde saíra.
Havia um nevoeiro suave, quase rente ao chão, que emprestava o seu quê de  tétrico ao ar já de si sombrio do recinto. A temperatura caiu rapidamente e um arrepio percorreu-lhe as costas, deixando-lhe os cabelos da nuca em pé.
Imobilizou-se. Uma vez mais perguntou-se se estaria mesmo decidido a dar aqueles passos e ir encontrar-se com uma… entidade.
Quem é Susana, ao fim e ao cabo? A jovem que era quando morreu, perdida, solitária, triste e maltratada, ou uma qualquer alma penada vinda do além para levar os humanos à perdição? Ou será que não passa de um fruto da sua imaginação?
-        Como foi que disse a cartomante? – Perguntou para si próprio. – “…estás pronto, tens a Força e o Conhecimento para a dominar…” fiz mal não ter visto qual a última carta. Não que eu acredite naquilo, mas… há tanta coisa que eu não acreditava e agora estou a pôr em equação.
Retomou a marcha, embora mais cautelosamente, até chegar ao pé da campa. Deitou novo olhar desconfiado ao espantoso Serafim. Dava-lhe a sensação que ele se mexia nos limites da visão periférica enquanto olhava para outro lado.
Mirou o telemóvel. Oito horas da noite…Ainda muito cedo. A roupa molhada, o frio, incomodavam-no de sobremaneira.
-        Podia ir até à pensão descansar um bocado. – Dava por si a falar sozinho. – Mas aquele vinho e o whisky ainda andam às voltas na minha cabeça. Se me for, vou dormir até de manhã e não terei adiantado nada em vir aqui.
Aquele local parecia ainda mais frio. Os olhos começavam a arder novamente e, se o chão não estivesse molhado, deitar-se-ia ali mais um pouco.
Olhou em volta e conseguiu divisar, junto ao mausoléu mais próximo, uma chapa ondulada que protegia algumas caixas de cartão desmontadas. Ali estava algo feito de encomenda.
Pegou a chapa, estendeu-a no chão. Colocou por cima uma das caixas e deitou-se em cima dela cobrindo-se com outra. Embora estivesse a tremer de frio já se sentia mais confortável.
Não precisou de se mexer muito mais. Ajeitou-se para que o anjo ficasse no seu campo de visão e, tão logo fechou os olhos, caiu num sono profundo.
Foi um ruído indistinto que o despertou. Abriu os olhos e o Serafim não estava no seu pedestal. O coração começou a bater descontroladamente enquanto, sem se mexer, olhava em volta para o encontrar.
O ar estava mais frio e o nevoeiro mais denso embora se mantivesse teimosamente a cerca de trinta centímetros do chão ocultando-o quase completamente.
Um suspiro audível fê-lo olhar para a esquerda e viu-a:
Susana aproximava-se. Vestia um vestido comprido negro que, fazendo conjunto com o seu cabelo da mesma cor, parecia trazer um capuz. Caminhava em passos lentos, sem pressa, de olhos postos no chão.
Olhou de novo para o pedestal e o anjo estava de volta ao seu lugar na posição do costume. Nem um milímetro afastado do lugar… O seu rosto parecia exibir um ar de gozo.
Atirou os cartões para o lado, ergueu-se de um salto e… arrependeu-se de imediato. Dores percorreram-lhe os membros e uma tontura fe-lo apoiar-se na tumba que ele sabia pertencer àquela mulher que se aproximava… e onde repousava o seu corpo.
Não tardou que ela o visse. Trazia lágrimas nos olhos, mas o seu rosto iluminou-se imediatamente e acelerou o passo até parar, estática, frente a ele .
Quedaram-se ambos como estátuas, frente a frente, cada um esperando que o outro se movimentasse, cada um aguardando a iniciativa do outro.
Por fim, António, timidamente, ergueu a mão direita e acariciou a face dela, sentindo a pele gelada na ponta dos dedos… o seu coração batia descontroladamente enquanto pensava que tocava em alguém que, contra todas as leis da vida, se encontrava fora do mundo a que pertencia. E no entanto, caminhava, falava e sentia no mundo dos vivos.
-        Vieste… - Ela sussurrou – Tinha tanto medo que desistisses… -  Abraçou-o forte pela cintura, encostando-lhe a cabeça no peito.
Ainda incerto, afagou hesitantemente a cabeça dela.
-        Sabias que eu vinha?
Susana ergueu a cabeça para o olhar nos olhos:
-        Não te mandei um recado?
-        Recado…? A cartomante?
-        Não te disse ela que a avisaram que estavas à porta?
-        E as cartas? Que significavam?
-        Cartas? Ah, as sortes que te deitou… Não fui eu. Estava a ver-te como um sonho e segredei-lhe as palavras que queria, as cartas saíam em conformidade…
-        E a última carta? Que era?
-        Não sei. Senti grande perturbação nela, mas tu quebraste a ligação quando saíste da tenda daquela forma… Não conseguia ver mais nada, foi como se de repente a janela enevoada, por onde te via, desaparecesse completamente… Mas o importante é estares aqui.
Ele apertou-a com força sentindo os contornos do seu corpo contra o seu:
-        Passei um ano inteiro à espera deste dia.
-        Um ano?
-        Sim, um ano.
Ela olhou-o pensativa…
-        Não tinha ideia… Não tenho a noção do tempo.
-        Que fazes nesse tempo? Nesse intervalo todo?
-        Não sei. Não tenho ideia do que se passa. É como se dormisse o tempo todo. Às vezes sonho. Às vezes via-te e tentava falar-te através das pessoas, mas elas não me sentiam e ignoravam-me. - Ele fechou os olhos e várias recordações lhe acudiam à mente… Algumas pessoas desconhecidas que o olhavam como se lhe fossem dizer alguma coisa, mas logo desviavam os olhos e continuavam o seu caminho. – Outras vezes, falava diretamente ao teu ouvido enquanto dormias e via-te sorrir.
-        Muitas vezes, sonhei que te ouvia falar e esse som enchia-me de alegria; por isso só queria dormir para te poder ouvir novamente.
-        Desculpa-me, meu querido. Perturbei tanto a tua vida. Como ficamos assim os dois, apenas nos vimos uma vez e por tão pouco tempo! Tão logo te deixei, senti que não poderia aguentar sem te ver novamente.
-        E eu, não sei como o teu rosto não sai da minha cabeça. O som da tua voz é como  uma música de fundo na minha existência.
-        Como pode ser isto? Não deveria acontecer… Não desta forma.
Agora, que estavam juntos, ambos conseguiam perceber a incongruência da sua situação. Amarem-se, cada um do outro lado de uma barreira… intransponível.
-        Sim. Que vamos fazer? – Perguntou ele - Como é possível estares aqui…em corpo?
-        Não sei. Também não percebo bem. Quando dou por mim, já estou a correr pelo beco e a entrar no cemitério para onde corri tantas vezes. Onde sentia sossego e conseguia estar sozinha até que dessem pela minha falta.
Agora tremiam ambos. O calor do corpo de António não era suficiente para enfrentar o frio do corpo de Susana que parecia sugar cada réstia de conforto deste mundo.
-        Por vezes, – continuou ela – sem saber onde estava, via-te a caminhar na rua; bastava abrir os olhos e conseguia ver-te, como que através de um nevoeiro que tornava tudo difuso à tua volta. Vi quando começaste a tomar medicamentos para dormir e te levantavas cada dia mais cansado. Vi-te discutir com um homem e sair zangado de um escritório.
Por uns segundos, na mente dele passaram velozes as recordações dos últimos meses… a necessidade cada vez maior de recorrer aos químicos para poder dormir… que depois o não deixavam acordar. Os atrasos sucessivos no emprego levaram às discussões e ao despedimento.
-        Ultimamente – confirmou ele – a minha vida não tem sido muito boa. Estou desempregado, não tenho dinheiro, roubei para pagar os transportes, não sei como vou pagar a pensão, mas tinha de vir aqui. Tinha de te ver, como se o vir aqui fosse o objetivo último da minha vida.
Sentaram-se na laje gelada da campa dela e foi a sua vez de passar a mão pelo rosto dele:
-        Meu querido. Vi quando começaste a beber imenso e a acompanhar com medicamentos… estás a destruir a tua vida.
-        Quero ir para junto de ti…
-        Não! – Alarmou-se ela. – Não o faças, não ficarias comigo, ficaríamos definitivamente afastados… Eu estou aqui presa entre dois mundos, demasiado boa para o inferno e demasiado má para o céu… O teu caminho não passa por aqui.
-        Que sabes tu?
-        Sim, é verdade que não sei. Mas também não sei como é possível vivermos este amor que nos consome… este amor que te destrói, enquanto eu estou presa no limbo e revivo eternamente os últimos acontecimentos da minha vida. Até que algo aconteça e as coisas sejam diferentes.
A medo, ele aproximou o rosto e tentou beijá-la.
Ela ergueu um dedo entre os lábios de ambos:
-        Não, por favor… Temos muito pouco tempo, antes de eu deixar de ser dona dos meus atos e volte a acontecer tudo outra vez.
Abraçou-o e apertou-o com força, contrariando as suas palavras:
-        Vai-te meu amor! Vai-te para longe de mim. Afasta-te que eu sou a tua perdição, sou aquela que te vai levar a um fim trágico. Eu já estou condenada há muito e nada podes fazer para me ajudar. Vai embora e vive a tua vida, esquece-me, quem sabe um dia nos encontramos… ambos do mesmo lado.
-        Não vou. – Afirmou ele. – Não quero ir. Fico contigo nem que tenha de passar a dormir aqui neste cemitério, à espera da próxima vez que voltes... Que me ilumines a existência com uns poucos minutos da tua presença.
Ela retesou-se, repentinamente e ergueu a cabeça como se ouvisse algo.
-        Que foi? – António sobressaltou-se.
Susana libertou-se do abraço e ergueu-se, olhando-o com os olhos arregalados. Os seus seios espetados subiam e desciam ao nível do rosto dele, enquanto respirava pesadamente. Curvou-se num gesto rápido e tocou lábios com lábios, num beijo fugidio que a ele pareceu um choque elétrico e em seguida começou a correr em direção ao pequeno portão.
-        Vai-te embora! – Gritou, olhando para trás, interrompendo a corrida. – Segue a tua vida, nós não temos futuro, pertencemos a mundos diferentes. Já deram pela minha falta, tenho de ir. Adeus meu amor.
Ele ficou estático, vendo-a correr até desaparecer envolta no nevoeiro, .
Por fim, decidiu-se e começou a correr atrás dela embrenhando-se também na névoa pegajosa que envolvia aquela área.
Foi com alguma dificuldade que encontrou o portão daquela manhã. O ar estava gelado, fazendo-o tremer;  grossas nuvens de fumo saíam da sua boca quando apreciou o gradeamento da porta pintado de novo e entreaberto, sem qualquer vestígio da vegetação que vira ainda há poucas horas.
Atravessou para o beco. Os muros tinham aspeto de estarem caiados de fresco e a calçada estava limpa e sem ervas… parecia-lhe impossível que não a tivesse alcançado Como pudera correr tanto?
Chegado ao fim do beco, a praça estava invisível. Uma névoa opaca envolvia-a e só a sombra da torre da igreja parecia divisar-se ao fundo. As badaladas da meia noite ecoaram tristemente no vazio. O sítio onde estava a tenda da cartomante não existia. Em seu lugar havia um muro alto e gradeado. Seguiu-o e encontrou o portão da propriedade. Estava aberto. Bastou empurrá-lo para poder entrar.
A casa, uma vivenda imponente de dois pisos, erguia-se sobriamente, iluminada de forma fantasmagórica pelas luzes da rua.
Receoso, aproximou-se da porta que percebeu estar entreaberta e foi-se apercebendo de uma voz de homem que ralhava por entre gritos de mulher.
Empurrou a porta e pôde apreciar a cena; um homem encorpado, de cabelo e barba negros, envergando um pijama, empunhava uma vergasta enquanto gritava para Susana. Esta, a meio da escada que subia para o primeiro piso, quedava-se de ar apavorado prestes a fugir escada acima:
-        Diz-me onde estavas, vagabunda! Sempre que me apanhas distraído, foges não sei para onde. Onde estavas, cabra?
Por favor, João! – Ela implorava em gritos desesperados. – Já te disse que não vou para lado nenhum, fico aqui nas traseiras, no cemitério. Não há lá ninguém!
-        Vais ter com um cabrão qualquer, mas eu mato-te! Pego fogo a esta casa e amarro-te cá dentro, mas antes hei de arrancar-te o coiro dos ossos com porrada. Anda cá! - E com a ordem começou a andar na direção dela.
-        Não, João, não é verdade! Não me batas por favor! - A jovem gritou, começando a correr pelas escadas.
A estas palavras, António não se conteve e forçou a porta para que se apercebessem da sua presença.
-        Não! – Gritou Susana – Vai-te embora, António, vai, por favor!
O homem olhou-o de alto abaixo e rosnou:
-        É este o porco com quem me andas a pôr os cornos? – E dirigindo-se a ele ameaçou. – Faz o que ela diz e desaparece-me da vista. Nunca a terás, é minha! Antes matá-la!
-        Deixa-o João! – Susana deu um passo para descer a escada.
António avançou na direção dele ainda indeciso sobre o que fazer, mas já revoltado pela covardia do energúmeno.
-        Deixa-a. Só um covarde bate numa mulher. Não acreditas no que ela diz? Não acontece nada sempre que sai daqui. É mais honrada que tu.
-        Também queres levar? Toma!
Num gesto rápido, João ergueu a vergasta e desceu-a sobre o recém-chegado que mal teve tempo de erguer o braço esquerdo para aparar a pancada. A ponta fina abriu um sulco sangrento na mão.
António saltou sobre ele e lutaram ambos pela arma entre socos, pontapés e gritos de desespero impotente de Susana.
De repente, de uma das portas, sai uma mulher alta, de cabelos brancos, empunhando uma faca de cozinha que tenta  espetar nas costas de António. Susana salta sobre ela e agora são dois os pares envolvidos numa luta desesperada pela vida.
A luta das mulheres para abruptamente. Os gritos delas interrompem-se fazendo com que também os homens parassem. Incrédulos veem a mulher idosa, ajoelhada e de mãos abertas, a olhar para o punho da faca que sai do seu abdomen:
-        Ai vaca que me mataste! – Gemeu antes de cair de borco, pesadamente.
-        Mãe! – Gritou João correndo em seu auxílio.
António e Susana ficaram aparvalhados; olhavam estarrecidos o quadro do homem que chorava  e abraçava a idosa, onde se formava uma poça de sangue.
Recuperado do espanto inicial, António tentou puxar a jovem para  porta. Por sua vez, João, voltava-se para eles erguendo-se como um gigante:
-        Sua p...! Mataste a minha mãe. – Colocou-se entre eles e a porta de saída, de um salto – Não saireis daqui com vida.
-        Foge! – Gritou António, empurrando Susana para as escadas enquanto se preparava para enfrentá-lo.
Percebendo que ele pretendia passar pela porta, João recuou e fechou-a , metendo a chave no bolso:
-        Terás que me matar para a conseguir. – Enquanto dizia isto, pegou uma bengala do bengaleiro e sacudindo-a, fez cair uma bainha exibindo uma lâmina com mais ou menos três palmos. – E não vai ser fácil.
-        Corre para aqui António! – Susana já se encontrava no alto da grande escada.
Avaliando que não tinha grandes alternativas, voltou costas ao espadachim e correu escada acima, para junto dela.
-        Não sairão daqui com vida !!! – Gritou ele, novamente.
Uma vez lá em cima, os dois correram pelo balcão que dominava o hall de entrada até entrarem num quarto enorme onde uma, também enorme, cama de casal dominava um conjunto de mobiliário vitoriano.
Susana correu para a janela e tentou, sem sucesso, abri-la. Puxou várias vezes o fecho, até se aperceber que estava destruído e a janela pregada:
-        Está pregada. – Gemeu – Ele estava-se a preparar para me fechar aqui.
Correram ambos para outro quarto mais pequeno, mas também imponente. Também aí a janela estava pregada. Um forte cheiro a queimado fazia-se sentir.
De novo no balcão aperceberam-se, com horror, que um incêndio devorava todo o piso de baixo e José subia as escadas, de costas, enquanto despejava um líquido inflamável nos degraus que iam ficando em chamas.
-        Louco! – Gritou Susana em pânico – Estás louco! Que estás a fazer? Para!
Correu para ele sem que António a conseguisse impedir, mas logo se imobilizou.
O incendiário chegara ao cimo da escada, atirou a embalagem para as labaredas mais de três metros abaixo e retirou a pequena espada do cinto:
-        Agora nós. Eu disse que ninguém ia sair vivo daqui, mas julgava que só ia apanhar a cabra. Afinal levo também o cabrão. Vamos fazer um churrasco às postas.
Brandiu a lâmina em direção ao rosto dela, falhando por poucos centímetros. Não desistindo, foi atirando golpes no ar enquanto ela recuava, passo a passo.
António pegou uma cadeira e colocou-se entre os dois, desviando os golpes enquanto procurava uma oportunidade de reverter a situação.
O crepitar das chamas começava a ser ensurdecedor e o fumo e o cheiro tornavam o ar irrespirável.
Ao tentar uma estocada direta, João encravou a espada na cadeira e António não perdeu a oportunidade de lha arrancar da mão e atirar ambos os objetos sobre a balaustrada para o meio das chamas. Envolveram-se, em seguida, numa luta desesperada de socos e pontapés cada um tentando derrubar o outro.
Por fim, João logrou acertar em cheio no rosto de António que caiu pesadamente contra uma das portas que se abriu de par em par. O incendiário pegou uma cadeira e preparava-se para agredir o rival com ela quando foi atingido em cheio na cabeça por um jarrão que se desfez em pedaços.
Voltou-se para Susana que recuava assustada e bateu-lhe com toda a força com a cadeira que empunhava. A jovem, desequilibrada pelo impacto, bateu contra a balaustrada que se partiu, lançando-a no vazio para o mar de chamas. O grito que soltou foi silenciado de imediato com o baque do choque do corpo contra o chão.
O assassino esboçou um sorriso e voltou-se para a sua outra vítima alterando a expressão para o espanto por o encontrar de pé em frente a ele. Não teve tempo para mais nada. Uma joelhada no baixo-ventre fê-lo curvar-se e dois socos bem acertados empurraram-no pelo buraco da balaustrada por onde caíra a infeliz Susana.
António tombou de joelhos chorando e tossindo enquanto olhava para o corpo da jovem, já pasto das chamas ao lado do seu assassino que começava também a arder.
Ergueu-se cambaleante,  correu para um dos quartos e tentou desesperadamente abrir a janela. Bateu-lhe com uma cadeira, mas as velhas portadas de madeira rija não cediam.
Correu para o outro quarto e repetiu o processo infrutífero uma vez mais. Entrou numa casa de banho onde um postigo demasiado pequeno para passar  era a única abertura não fechada para o exterior. O calor era insuportável e o ar irrespirável, a visibilidade quase nula.
Subiu na sanita e colocou a cabeça de fora para aspirar largas golfadas de ar puro.
De volta ao interior, correu novamente através do balcão onde as chamas já começavam a devorar os móveis e dirigiu-se à única porta que ainda não tinha tentado, logo ao cimo das escadas.
Colocou a mão no puxador e soltou um grito lancinante. O puxador estava em brasa e a sua mão ficara em carne viva com o toque. Tirou o blusão e envolveu o puxador da porta abrindo-a… Uma gigantesca labareda projetou-se do interior da divisão transformando-o numa tocha humana. Desesperado, atirou-se e aterrou pesadamente nas escadas ardentes que se desmoronaram numa explosão de chamas e fumo.
-        Vá não se mexa. – A voz feminina veio de muito longe.
António abriu dolorosamente os olhos. Tinha a cabeça caída para trás e a sua primeira visão foi a do anjo que o olhava do seu pedestal com o seu eterno ar zombeteiro.
Sentia-se encharcado em suor e não conseguia controlar as tremuras. Uma picadela no braço fê-lo encolher-se.
-        Já está connosco outra vez? – A voz feminina conhecida ouviu-se novamente e ele ergueu um pouco a cabeça para ver a cartomante debruçada sobre ele ainda empunhando uma seringa. – Estava a ver que nos deixava de vez.
Ela envergava uma farda de enfermeira…
-        Se calhar não se perderia grande coisa. – Foi o comentário duma voz masculina próxima que, após focar a vista, identificou Fernando, o dono do café, envergando uma farda da PSP com ar de enfastiado – Tanta coisa para fazer e andar aqui a acudir a vagabundos.
Deixou cair a cabeça para trás porque não aguentava a força no pescoço.
O padre Miguel passou no seu ângulo de visão e pareceu ajoelhar-se ao lado da enfermeira/cartomante que o estava a auscultar:
-        Como acha que ele está?
-        Bem, para além do que me parece ser uma bela de uma pneumonia - ela sussurrou - tem marcas de seringas em vários pontos. Anda a consumir drogas duras. Vamos fazer os possíveis mas acho que está a ressacar e a arder em febre. Tudo pode acontecer… Além de tudo deve estar a delirar e se calhar nem se apercebe do que lhe está a acontecer.
Sentiu-se dormir, mas logo notou que o erguiam e o colocavam numa maca.
Ao passar ao pé do padre, que conversava com o policia/Fernando, conseguiu ainda ouvir a conversa:
-        … pobre diabo esteve aqui no ano passado, mas na altura estava com bom aspeto e parecia que a vida lhe corria bem. Ao que as pessoas descem. Quando ontem o filei a dormir na igreja desconfiei logo que vinha para aqui.
Enquanto o transportavam para a ambulância as lágrimas começaram a correr livremente pelo rosto enquanto gemia:
-        Foi um sonho meu amor? Não passas de um sonho, um delírio de um drogado, bela Susana?
Ergueu a custo o braço esquerdo e viu ali, bem vincada nas costas da mão, a marca da chibata de João. Na palma tinha desenhado, numa ferida quase cicatrizada, a forma de um puxador de uma porta. Sem forças, deixou cair o braço e tornou a adormecer.
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