domingo, 24 de novembro de 2013

Desolação

De olhos fechados, trincou com força a maçã vermelha sentindo-a explodir na boca numa volúpia de açúcar.
Mastigou calmamente saboreando cada gota do fruto e, desejando manter uns segundos mais aquela sensação, engoliu, quase contrariado.
Entre dentadas, espreitou de olhos semicerrados as nesgas de sol que logravam romper por entre as nuvens escuras, trazendo uma vaga lembrança do calor de outras eras.
Deixou-se ficar sentado nas enormes pedras da ruina onde descansava fazendo durar a maçã enquanto escutava as vozes algo longínquas dos companheiros no exterior.
Pouco restava do descomunal edifício que escolhera para descansar. Apenas as paredes erguidas para o céu onde já não existia telhado, numa caricatura de mãos que imploravam aos céus.
O chão, pejado de escombros negros, era a evidência de um longínquo crime do qual este edifício fora testemunha e vitima.
Ergueu-se finalmente, com o uniforme camuflado já a ficar puído e enfrentou os restos do altar que ocupavam completamente uma das paredes. Com a maçã quase comida numa mão e a espingarda automática na outra, acenou um adeus respeitoso à cruz queimada que teimosamente resistia no meio da desolação.
Caminhou em passos indolentes e atravessou o pórtico, de onde a enorme porta desaparecera, para o exterior onde várias dezenas de homens e mulheres de uniforme igual se afadigavam com braçados de armas, munições e outras cargas.
O cenário deixara de ser o de um edifício em ruinas para se converter num mundo de destruição a perder de vista. Prédios com janelas sem vidros, como olhos sem vida, inclinavam-se em ângulos improváveis sobre outros reduzidos a escombros.
Aqui e ali, na praça que se estendia à sua frente, misturados com pedras e detritos, repousavam restos calcinados de automóveis arrumados para os lados para rasgar uma passagem para os veículos militares.
Um dos soldados aproximou-se e com uma continência desleixada anunciou “Meu sargento, o nosso comandante deu a ordem de reunir no ponto de encontro para partida imediata.”. Com a velocidade com que aparecera assim se afastou.
O sargento deu a ultima mordida na maçã e começou a caminhar na mesma direção que o soldado tomara, contornando a ruina da igreja.
Parou uns segundos a olhar a gigantesca cratera que engolira metade da cidade. A pouca água que ainda corria do rio caía desamparada numa suja cascata para qualquer lado prometendo que a enorme depressão se tornaria um lago em breve.
“Este primeiro ano é apenas o princípio de muitos outros de morte e destruição antes de podermos recomeçar a pôr ordem no mundo. Mas um dia havemos de conseguir. – Pensou – Havemos de trazer a ordem e a paz e taparemos estes buracos hediondos.”
Como que para começar o que prometia, arremessou o caroço roído da última maçã do mundo para a cratera que levara parte de Paris.
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