segunda-feira, 13 de abril de 2015

Corrécio 3ª parte - Vida dura



-         Zé!, Ò Zé. - A voz chegava longínqua, estridente, a querer arrancá-lo do doce torpor em que se encontrava. - Zé, acorda, homem de Deus que já nasceu o sol faz tempo.
-         Que queres? - Rosnou mal humorado, soerguendo-se.
-         Acorda, que já está todo o povo p'rá vindima. Esta noite fechaste as portadas e eu não senti o sol nascer nem o cantar do galo.
A mulher de rosto redondo, já vestida, lenço colorido na cabeça, corpete, blusa branca e saia rodada de cotim, chamava-o preocupada.
-         E que queres que te faça? - Sentou-se na borda da cama vestido apenas com as ceroulas e com os pés descalços nas tábuas do soalho – Tou cá com uns azeites que se não fosse por nada nem ia trabalhar... - Esfregou os olhos.
A mulher fitou o corpo pálido, com vários hematomas, do marido. As mãos que esfregavam os olhos e desapareciam debaixo da cabeleira encaracolada negra tinham feridas nos nós dos dedos.
-         Andaste outra vez à bulha, Zé Corrécio, excomungado! - Exclamou ela.
-         E se andei? - Ergueu-se e empurrou-a violentamente para o lado erguendo a mão como se a fosse esbofetear.
Ela encolheu-se à espera da bofetada mas ele mudou de ideias e com novo empurrão dirigiu-se à bacia da água em barro que estava pousada na cómoda ao lado do jarrão do mesmo material.
Já se haviam passado cerca de oito anos desde que se casaram e o seu comportamento para com ela alternara sempre entre a indiferença e a brutalidade com sexo embriagado à mistura.
Ela era a filha do taberneiro, mais nova que ele e em quem ele não reparava. Ele era o Zé Corrécio, brigão, valente, que levara uma “saronda” do velho fidalgo por lhe andar a rondar a filha.
Aos seus olhos ele era admirável, mesmo quando se envolvia nas rixas, que ganhava a maior parte das vezes, e era corrido da taberna pelo seu pai, João Francisco, que apesar de tudo sempre respeitou.
Um dia, os oponentes eram três e ele levou uma “malha” tão grande que ficou desacordado no chão. Foi o ti João taberneiro que correu com os adversários a varapau, salvando-lhe a vida.
Como os pais do Zé Corrécio não lhe falavam há algum tempo devido às “vergonhas” que este lhes fazia passar com bebedeiras e rixas constantes,  João Francisco e a mulher Mariana de Jesus acolheram-no, temporariamente, num dos quartos da taberna que também servia de estalagem.
Calhou a Maria dos Anjos, felicíssima com a sua sorte, a maior parte do trabalho de cuidar do ferido. Este, com os desvelos da jovem, recuperou rapidamente e reparou finalmente na admiração de que era alvo.
Assim que se encontrou melhor, ti Mariana achou por bem que o jovem voltasse para o casebre onde vivia e saísse de ao pé da sua filha virgem e casadoira.
Era já tarde, porém. Maria dos Anjos estava grávida.
Embora furiosos, os taberneiros viram-se obrigados a a falar com os pais do José e obrigarem o jovem a corrigir a “sua falta” e casar com Maria dos Anjos.
Tantos anos depois, ela ainda não conseguia deixar de amar aquele homem que nada fazia para alimentar esse amor.
Ele lavou o rosto com ruído enquanto ela, perdido o medo, o observava desaprovadoramente de mãos na cinta:
-         A  minha mãe disse que o meu pai te ia proibir de ir lá beber à taberna se tornasses  a armar tourada por aquelas bandas.
-         Sossega Maria dos Anjos... Não foi na taberna. Foi mais um ajuste de contas com um tratante, mas agora já está tudo em pratos limpos. Prepara aí uma côdea, vá, que tenho que ir. - Exigiu enquanto vestia a camisa e as calças.
Preocupada, a mulher obedeceu e foi à cozinha preparar uma lasca grossa de pão centeio e uma fatia de presunto que dobrou cuidadosamente num retalho de pano. Ao lado depositou uma maçã (que sabia que ele não levaria) e a bota com o vinho que não podia faltar.
Ele pegou a colher e a malga de madeira com a sopa fria e comeu tudo em quatro colheradas.
-         E a canalha? - Ele perguntou ao pegar na merenda e limpando a boca com a manga da camisa – Não os acordas?
-         Não. Estou atrasada a ti Luísa depois vem a trazer-lhes de comer e a vesti-los. - Referiam-se aos filhos Olinda e João de cinco e sete anos respetivamente.
-         Vê lá se começas a por os ganapos a fazer alguma coisa. Não me cries aqui dois madraços ou encho-te de lambadas. - E enquanto fazia esta ameaça, pegou a faca de cozinha que estava em cima da mesa e prendeu-a na cintas.
Saiu, batendo a porta com estrondo e logo se ouviram soar as tamancas de madeira ritmadamente pelo caminho.
A passo, pôs o chapéu em palha com abas largas, que detestava, na cabeça e correu pelo canelho para buscar o cavalo.
Chegado à vinha, já toda a gente trabalhava em bom ritmo e teve que ouvir um “ralhete” do capataz antes de pegar ao trabalho, advertindo-o que, se tornasse a atrasar-se, escusava de aparecer.
João bem sabia que só trabalhava naquelas vindimas porque  pertenciam ao marido de Paula, o Dr Henrique de Mello, desde o casamento com ela. Se continuassem na posse do velho Sampaio, não haveria ali nada para ele.
Ensonado, começou as suas “caminhadas” com o cavalo carregado até à carroça com as dornas.
Demorava cerca de vinte minutos em cada viagem de ida e volta e conseguiu fazer quase dez viagens antes de darem ordens para parar para o “mata-bicho”.
Todos os trabalhadores se reuniram nas paredes que compunham os socalcos para fazerem um pequeno intervalo e comerem alguma coisa que trouxessem ou simplesmente descansarem um pouco.
Zé manteve-se, como sempre, sozinho. Roeu a côdea e mordeu o presunto que acompanhou com umas goladas do tinto granjeado por ele e por seu pai com quem tinha reatado alguns anos atrás.
De repente notou que o Zé Sardinheiro e o Quim da Ribeira falavam em sussurros deitando-lhe olhares de soslaio.
-         Que foi? Não vos chega a bucha? Querem a palha do meu chapéu? - Zé provocou. - Ou alguém quer acabar o que começamos ontem?
O Quim da Ribeira virou-lhe as costas com uma expressão de desprezo mas o Zé Sardinheiro retrucou, jocoso e ignorando a ameaça:
-         A menina Paula não te veio ver hoje.
Corou e deitou-lhe um olhar furioso. Olhou demoradamente a faca de cozinha com que estava a cortar o presunto antes de responder:
-         E que te dá a ti? Se a esposa do Dr. Henrique Mello vem ou não ver-me?
-         Cá a mim, nada, é verdade. Isso lá terá que ser entre vocês os três... ou os quatro. - O Sardinheiro soltou uma gargalhada.
-         Sabes porque a menina não veio hoje? - Meteu-se o Quim – Porque já andou o povo todo montes fora à “pregunta” dela. Desapareceu esta noite de casa. Com cavalo e tudo.
-         Chegou-se a dizer que tinhas culpas no cartório. - Tornou o Sardinheiro – A tua sorte é que aqui o Quim te viu chegar bêbado a casa tarde na noite.
Zé olhou os dois homens, cada vez mais furioso.
-         Se tivesses sido tu que andavas a larpar a menina, era agora que o Doutor te mandava chegar uns chumbos ao coiro. - Assegurou Quim e ambos riram com vontade. - Tás a dever-me um copo!
A cacofonia para de repente quando se apercebem do ar ameaçador de Zé, com a faca em punho, preparando-se para espetar alguém.
-         Quietos! Que é lá isso? Não quero cá merdas! - O capataz, Francisco da Mata, que acabava de chegar intervém no momento certo. - Zé Corrécio, poisa lá a faca das cebolas. Se fazes baderna aqui vais já corrido pra casa.
-         Essas duas comadres não têm que fazer e estão a pedir umas cabeçadas... ou uma facada no bucho. - Zé rosnou, sem baixar a guarda, agastado por Francisco ter usado usado a sua alcunha, que era coisa que poucos se atreviam a fazer.
-         É verdade o que eles dizem. - Asseverou o capataz – A mulher do Doutor desapareceu esta noite. Mas já se sabe mais. Acharam o cavalo dela preso ao pé da estação do comboio... o dela e o do Manuel Pinho, da aldeia vizinha. Devem ter apanhado o primeiro comboio da manhã. Nunca mais ninguém os vê.
-         A sério? - O Sardinheiro não queria acreditar – O Manel Seminarista e a menina Paula? Ora quem haveria de dizer, o santinho de pau oco.
-         Os pais dele estão uma tristeza só. - Continuou o Francisco – Ele deitou-lhes a mão a um monte de dinheiro e foi-se embora.
-         Roubou o dinheiro aos pais e a mulher ao Doutor Mello. - Riu-se alto o Quim.
-         Pouco barulho, fala baixo que te ouvem, boca de lavagem. Agora vamos mas é ao trabalho que se faz tarde. - Admoestou o capataz antes de levantar a voz e gritar – Ao trabalho! Todos ao trabalho.
Durante todo este diálogo final Zé, como se não lhe interessasse a conversa, embrulhou o que restava da merenda, bebeu um trago de vinho e virou-lhes as costas.
Carregou o cavalo com mais quatro cestos e começou a subida íngreme tomando o cuidado de guiar o animal pelas pedras menos escorregadias.


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