segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Contador de Histórias

"Nunca contes uma história por ela ser real; conta-a porque é uma boa história"
John Pentland Mahaffy
Na época clássica, os Gregos diziam que havia pequenos seres (demónios) que traziam a inspiração e faziam com que pessoas aparentemente normais, produzissem obras extraordinárias que provocavam o deleite dos demais. No tempo dos Romanos, as coisas não variavam muito e os demónios tinham-se transformado em pequenos génios que habitavam as paredes das casas e que segredavam a inspiração aos autores... A ser assim, imagine-se a sorte que Eça de Queiroz ou Antero de Quental,, apenas para nomear dois, tiveram com a escolha das casas. O próprio Camilo, teve a “extraordinária fortuna” de calhar numa cela fervilhando desses seres em plena cadeia da Relação do Porto!
Claro que com o Humanismo, passou-se a atribuir as "culpas" ao próprio escritor, ao dom que trazia consigo e que desenvolvia ao longo dos tempos. Veja-se o peso da responsabilidade para o autor a partir dessa altura.
Aqueles que, como eu, gostam de se intitular de “Contadores de Histórias", deveriam de se sentir aterrorizados com a ideia do que as outras pessoas vão pensar de nós: quando lerem uma história sobre um drogado, vão achar que é experiência própria, quando falarmos de violência doméstica, julgarão que somos vítima, ou agressor, quando escrevermos sobre perversões ou desvios sexuais…
Estão a ver o problema não é?
A verdade é que o processo do contador de histórias, apesar de ter muito da nossa própria experiência, na maior das vezes, parte do ponto de vista do observador e se é do participante, apenas em situações completamente extrapoladas… de outra forma não seria uma história, mas um diário.
O processo que envolve o nascimento de uma história, não tem um plano, nem um procedimento pré estabelecido que indique que primeiro vem o “A” e depois o “B” e por aí além. Isso é organização,  e essa vem depois da ideia formada. Primeiro junta-se, depois sim, organiza-se.
A história pode surgir na nossa cabeça, como algo saído das brumas que, quando nos apercebemos, já lá estava, insinuando-se, como os tais bichinhos da parede, não confundir com bichos de conta, baratas e outros afins. Outras vezes, é como um flash que nos encandeia após uma frase duma conversa, ou duma discussão… que até pode nem ser connosco. Outras ainda, chega ao nosso coração flutuando nas notas de uma música, ou entre as estrofes de uma canção.
Os personagens dessas histórias, são amigos que vamos encontrando, escondidos atrás de um verso sentido, no olhar vazio da mulher de olhos tristes na paragem do autocarro, ou no homem sujo e desgrenhado que dorme no umbral da porta.
Quando tal criatura nasce, sim porque é algo que começa a viver e pulsa, é praticamente impossível ignora-la e os seus personagens, que entretanto fomos achando, aparecem e interagem uns com os outros continuamente, quando estamos a trabalhar, a ver televisão, ou mesmo a tentar dormir. Não se consegue evitar e então, sentado frente ao computador, ou nas notas do telemóvel, os rabiscos do carácter dos personagens começa a tomar forma junto com o exoesqueleto da nova narrativa.
Durante horas, dias ou meses, conversamos com esses personagens que nos contam as suas histórias e tornam-se nossos amigos. Entrelaçam os seus sonhos nos nossos, com novelos de fofo algodão. Com eles rimos das peripécias engraçadas e com eles choramos as injustiças de que foram alvo, ou as perdas que sofreram, enquanto vamos coligindo todos os dados, toda a trama.
No fim, aconchegámos-los carinhosamente nas páginas brancas de um livro e com uma sensação de saudade, arrumámos-lo zelosamente na prateleira de uma estante, mesmo ao lado de centenas de outros amigos, trazidos à vida e à memória por outros tão ou mais loucos que eu.
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