quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Na Margem do Lago




Tabor avançou até ao tabuado do cais, pela terra amarela e poeirenta, que tudo invadia. Os pés, descalços e sujos, estavam calejados e nem se desviavam das pequenas e aguçadas pedras, que infestavam o chão. Debaixo do inclemente sol laranja, que dominava o céu sem nuvens, sentou-se no toco de madeira, que estava no fim do cais, de propósito para o efeito. À sua frente, a mesma terra amarela e poeirenta, estendia-se até às escarpas desoladas, quase no limite do horizonte, ocupando o lugar onde, ainda há alguns anos, estavam as águas cristalinas que matavam a sede e a fome, a muitas dezenas de famílias. O tablado do cais, erguia-se, como uma ponte inacabada, sobre a terra árida, mesmo ao lado dos esqueletos abandonados de barcos de pesca.
Era pouco mais do que uma criança, quando os pais se mudaram para a margem daquele lago. Sabia que fugiam da guerra, mas pouco mais. Ficaram a viver numa casa de adobe e telhado de junco, construída com as suas próprias mãos, numa comunidade piscatória.
Já devia ter uns dez anos, quando mudaram outra vez. Recordava-se de falarem, com preocupação, da descida alarmante do nível do lago, que diziam ser causada pela guerra, que secara ou desviara quase todos os rios. Como provas dessa guerra, só se recordava de ter visto, algumas vezes, ruidosas máquinas voadoras, cor de areia, ostentando um retângulo vermelho com uma lua branca. Sobrevoavam o lago e faziam todos procurar abrigo, apavorados. Nunca lhes fizeram mal, limitavam-se a rasgar o céu, com estrondo e até elas, com o tempo, deixaram de aparecer.
Foi necessário, nessa altura, construir novo cais, umas boas centenas de metros mais à frente e arrastar os barcos de volta às águas. Depois disso, cada verão que passava, parecia mais quente que o anterior e mais um ou dois metros de areia ficavam expostos… e o inverno, furioso de trovoadas secas e ventos ciclónicos, não o retornavam ao nível anterior. As árvores iam-se ficando para trás e apenas uma ou outra, se aventurava a crescer mais próximo da água, no solo arenoso e quase estéril. Ainda “perseguiram” o lago mais três vezes, antes dos pais morrerem, primeiro um e depois outro, com pouco tempo de diferença. A falta da água, suportaram-na, mas não conseguiram viver um sem o outro.
Ayla foi um ar de primavera que surgiu na sua vida. Sensivelmente da mesma idade, de amigos de infância tornaram-se um só e, por algum tempo, ambos conseguiram esquecer a vida amarga e dura, com a fome sempre à espreita.
De tempos em tempos, apareciam grupos de três ou quatro pessoas, mortos de fome e sede, provenientes do Norte, que contavam histórias terríveis de grandes cidades incendiadas, muitos mortos de fome e de doença. Poucos se quedavam; também ali não havia muito que os satisfizesse e por isso, rumavam ao Sul… exceto os demasiado doentes, que ficavam enterrados num qualquer sítio, próximo de onde tinha sido sepultado o último cadáver. O cemitério organizado, ficava já demasiado longe, para que valesse a pena a extenuante caminhada sob o sol inclemente.
O lento encolher do lago, obrigava a construção de um novo cais, de quatro em quatro anos. Começaram a construí-lo cada vez mais longo, para que se mantivesse mais tempo na água, mas isso obrigava a ir buscar mais madeira, cada vez mais longe, aos esquálidos bosques a sul, pelo que acabaram por reciclar os tabuados anteriores. Alguns aldeãos eram contra, reclamavam que o lago voltaria a encher e os demolidos cais, teriam de ser reerguidos.
Mas até os vizinhos iam reduzindo. Os lavradores tinham cada vez mais dificuldade em produzir as suas colheitas no solo seco e o que nascia, era débil e mirrado, os pescadores apanhavam cada vez menos peixe e mais pequeno. Por vezes, enormes cardumes de peixes mortos inundavam as praias e ele estavam semanas sem pescar. O vento norte, carregado de areia, visitava-nos frequentemente durante o inverno e fustigava as folhas tenras das plantas destruindo as colheitas. A caça foi desaparecendo também, procurando água noutras paragens. Poucos eram já os aldeãos, que continuavam a reconstruir a casa a cada dez anos, perseguindo a fugidia água, onde os peixes eram cada vez mais pequenos. Todos os meses havia uma família que ia embora, ou o último elemento de outra, que falecia.
Brincou com o buraco nas calças, que lhe deixava o joelho quase exposto, enquanto lágrimas pingavam sobre o tecido empoeirado. Mesmo quando nasceu Raíssa, ele não acedeu a procurarem novas paragens. Primeiro porque a mãe estava frágil, depois, porque a criança era frágil… era melhor ficarem, ali tinham o sustento ainda certo e os pescadores eram cada vez menos. Fizeram uma festa na aldeia, quase não nasciam crianças e aquela, era uma promessa de que tudo poderia voltar a ser como antes.
Raíssa acabou por morrer. Tinha pouco mais de um ano… sempre fora débil e não aguentou a dieta de peixe e os poucos legumes desidratados, que se conseguiam arranjar. A pequena tumba, ficara lá para trás, ao pé da última casa que ocuparam antes desta.
Mesmo assim, ele não se decidiu a abandonar aquele local desolado e mantiveram-se lá, cada vez mais sozinhos. Ela não o culpava pela morte da filha, mas olhava-o com ressentimento. Não lhe respondeu, da última vez que lhe disse que tinham de mudar novamente, como já estavam a fazer os últimos quatro vizinhos que restavam. Dois deles partiram, mas de vez, para Sul e só três novas casas de adobe foram erguidas nas novas margens do lago, que tinha nessa altura já pouco mais de um quilometro de largo.
Foi com dificuldade que conseguiu convencer os vizinhos a construir o novo cais, mas fizeram-no. Uma vez mais, desmontaram o anterior e acartaram-no, tábua por tábua, até o montarem no novo local … há quantos anos isso fora…
Tabor não se lembrava já quando partira o último vizinho. Quando fora que ele pegara nos parcos haveres, na mulher e nos dois filhos quase adultos e partira ao longo do leito seco do rio, que em tempos alimentara o lago. Todos se foram e nenhum voltou… apenas ele, teimoso, insistira com a mulher, Ayla, que o lago haveria de voltar, quando a natureza fizesse as pazes com os homens.
Quando precisava de alguma coisa que não possuía, caminhava mais de meio dia, até à aldeia mais próxima e regressava, já noite muito escura, guiado pela fogueira que Ayla acendia na aridez da planura e ali ficava, até que ele regressasse.
Há cerca de um mês, fizera a extenuante caminhada até à aldeia… encontrara-a vazia. Chorara, no regresso, ao ver a pobre velha, em pé, ao lado da fogueira, suportada pela esperança do seu regresso. Teve a certeza que, se não voltasse, ela ficaria ali a esperá-lo, até que a luz dos seus dias se apagasse.
Agora, como nunca antes, sentia-se velho e vencido. A natureza não iria, nunca, perdoar aos Homens e Deus, era mais que certo, ou morrera, ou abandonara-nos para sempre.
Nas noites geladas, sentava-se em frente a Ayla, com a esquálida fogueira pelo meio, olhando aquele rosto vincado pelas rugas, que em tempos fora jovem e belo e perguntava-se se conseguiria suportar o dia em que ela partiria, ou como seria para ela, se ele se fosse primeiro.
Eram esses os seus pensamentos ali, no cais de um lago seco, sentado no toco de madeira a olhar o sol laranja que, do alto seu trono, zombava da desgraça dos orgulhosos humanos. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto, deixando sulcos lamacentos. O vento picava-o com areia, enquanto assobiava fortemente e foi empurrado por ele, que tomou a decisão e levantou-se do toco, que era o seu local de espera.
No outro dia de manhã, Tabor e Ayla, com os seus parcos haveres, numa padiola que arrastavam pelo chão, deixaram a casa de adobe, junto ao cais.
 Partiram, em direção a Sul, sem saber se seriam os últimos humanos da Terra.

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