quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Água e Sangue


 

Água e sangue, era o que Estevão tinha na mão naquele momento.

Limpou com um lenço de papel, apressadamente. Sentia-se gelado, com gotas de transpiração fria a perlar-lhe a fronte.

Olhou em volta para os restantes passageiros do avião que o transportava para Nova Iorque, completamente alheios ao seu drama pessoal. Até mesmo o homem gordo sentado na outra fila, para além do lugar vazio a seu lado, dormitava, a cabeça caída sobre o jornal.

Tornou a tossir, mas desta vez para um lenço de papel, que também se manchou de carmim. Engoliu em seco, olhos esbugalhados, fitando incrédulo o conteúdo do papel, que rapidamente amarrotou, enojado e colocou no saco de vómito. Encostou a cabeça para trás tentando controlar a respiração acelerada, enquanto tinha a sensação de que o estômago iria rebentar a qualquer momento.

Que estava a acontecer? — Perguntava-se, prestes a entrar em pânico. — Nunca antes se sentira mal durante uma viagem de avião… o pequeno-almoço no hotel foi normalíssimo. Claro que a tensão em que vivera nos últimos dias… particularmente no último, pode explicar a dor de estômago, a azia e o enfartamento, mas não o sangue na expetoração. Ele sempre fora saudável.

Gradualmente, a respiração voltava ao ritmo normal, enquanto relembrava o objetivo da sua viagem. Finalmente as coisas iam correr bem para ele. Tinha pena de não ter Irene consigo, mas ela estava a tornar-se um peso e os súbitos acessos de consciência estavam a preocupá-lo. Manteve os olhos fechados enquanto lembrava a discussão da noite anterior no quarto do hotel:

***

— É que nem te importaste com o Bernardo, que conheces há tantos anos! — Irene, o longo e fino roupão mal tapando o corpo bem torneado, de que disfrutara pouco tempo antes, apontava-lhe um dedo acusador. — Deixaste-o ficar com as culpas, não eram amigos?

— Amigos, é uma força de expressão, que queres? — Replicou Estevão, voltando-lhe as costas e atirando para o ar um gesto contrariado. — Ele era o segurança, via-o todos os dias e cumprimentava-o… daí a sermos amigos… não lhe fiz mal, nem nada.

— Ele tem mulher e filhos. De certeza perdeu o emprego e pode até ser preso. — Insistiu ela. — Enganaste-o!

— Não sei porque é que estás com esses pruridos todos. — O homem enervou-se e quase lhe gritou aos ouvidos. — Ele também estava disposto a fugir com o dinheiro. Queria lá saber da mulher e dos filhos!

— E por isso, não tiveste problema nenhum em enganá-lo e deixá-lo fechado naquele armário até que chegasse a polícia. — Irene empurrou-o. — Também não tiveste nenhuns escrúpulos em deixar a tua própria mulher e o teu filho "que amavas tanto".

Estevão virou-lhe as costas novamente e dirigiu-se para a janela.

— E o Ferreira que tanto confiava em ti? — Ela não desistia. — Esse sim era teu amigo, por isso deixava-te fazer a contagem do dinheiro sozinho e assinava como se contasse. — Irene pousou os olhos no chão. — Como se sentirá ele agora, sabendo-se enganado, sabendo a forma como te apropriaste do dinheiro e sabendo que vai ter de explicar aos patrões onde estava ele, enquanto tu fugias com o resultado das apostas. Não precisavas de ter escondido aquele dinheiro no carro dele, estava "entalado" que chegasse.

— Nós fugíamos! Nós! — Ele pôs-se ao pé dela de um salto e agarrou-a pelo braço com violência. — Nós, roubamos aquele dinheiro! O Ferreira, o Bernardo, a mulher dele e a minha, foram todos baixas necessárias para atingir o NOSSO objetivo.

— Ainda bem que referes que somos NÓS! — Ela sacudiu-o com violência e tirou um saco de viagem do armário, que atirou para cima da cama. — Vamos pegar nessa mala que levas avidamente para todo o lado e dividir o NOSSO dinheiro! Não vá acontecer alguma coisa…

Estevão abriu a boca para expressar o seu desacordo, mas ela nem olhou para ele, apenas despejou para cima da cama os molhos de notas cuidadosamente cintados.

Dividiram aquela pequena fortuna em silêncio e Irene começou a arrumar a sua parte no compartimento falso da mala de viagem.

— É assim que queres estar comigo? — Rouquejou ele. — Com esta desconfiança?

— E eu posso confiar em ti? — Perguntou Irene. — Traíste tudo e todos… eu serei a próxima, quando te der jeito. Não querias dividir o dinheiro e dormias praticamente com a mala debaixo de ti… queres falar de confiança? — Ela cravou os olhos verdes nos castanhos dele. — Eu não fiz isto por dinheiro, fi-lo por ti, para estar contigo! Estava cega! Estava preparada para passar a vida a fugir, sempre a olhar por cima do ombro, mas de mão dada contigo. Tenho estado a aperceber-me nestes dias que o teu único amor é o que tens aí nesse saco, eu sou apenas a gaja que te ajudou e com quem dás umas quecas.

— Hipocritazinha de m** — Enfureceu-se Estevão. — Tens muita pena dos tansos, mas queres a tua parte! Leva-a e depois desaparece-me da vista. Amanhã de manhã no aeroporto vou trocar o meu bilhete, segue para a Venezuela, eu vou para onde me levar o vento. Espero que sejas feliz. — Torceu a boca com desprezo nestas últimas palavras.

— Por mim, podes ir para o inferno! — Atirou ela, raivosa.

— Irei, descansa. — Confirmou Estevão, a voz quase sumida. — Esperarei lá por ti, se chegar primeiro.

***

Agora, ali sozinho, naquele imenso avião cheio de passageiros, sentia falta dela. A dor lancinante que lhe mordeu o estômago, justificou as lágrimas que verteu. Deixou-se cair de cabeça no assento vazio enquanto relembrava as últimas horas no aeroporto… não precisava ter feito aquilo…

Naquela manhã, assim que chegaram ao terminal, foram tomar café, como dois bons amigos. Sentados na sala de espera, Irene comportava-se como se aguardasse que ele dissesse algo, mas ele estava furioso, não lhe perdoava a desconfiança e… a obrigação de lhe entregar a parte dela. Irene tirou da mala duas pequenas garrafas de água e deu-lhe uma delas com um sorriso triste. "Ficamos assim?" Interrogou. Ele bebeu dois longos golos e atirou a garrafa para o recipiente de reciclagem, ao mesmo tempo que se erguia. "Não tens o que querias?" Acusou, antes de se despedir com um "Fica bem!".

Todo interior do avião parecia estar com as cores alteradas, ardia-lhe a boca e a garganta e sofreu novo ataque violento de tosse.

A última coisa que fizera no aeroporto, após trocar o seu bilhete, foi um telefonema duma cabine. De longe, ficou a apreciar o espetáculo, quando as autoridades rodearam Irene e a manietaram. Não estava perto o suficiente para poder disfrutar do rosto dela quando os agentes abriram a mala e encontraram, não a quantia que ela tinha posto lá, mas apenas a parte que ele deixara; o suficiente para a incriminar.

"Livrara-se dela e dera-lhe uma lição!" Ele sorriu, mas foi incapaz de conter um vômito sanguinolento sobre o tecido da cadeira onde pousava a cabeça.

Tentou erguer-se, mas tudo parecia andar à volta. A hospedeira aproximou-se e olhou-o horrorizada, com a quantidade de sangue ele tinha na camisa e nas mãos. Gotas copiosas, vermelhas, corriam do nariz e dos olhos. Confuso, meteu a mão ao bolso à procura de um lenço e encontrou um envelope. Sem saber como lidar com a sua situação, dedicou a atenção ao achado e viu que tinha o nome dele, com a letra de Irene. Deixando dedadas rubras, abriu-o.

Lá dentro, havia um rótulo de raticida e um post-it onde ela escrevera:

"Só para saberes o que tinha a água que te dei. Sempre vais chegar primeiro ao inferno."

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