sábado, 29 de outubro de 2022

O Ataque

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 3   

O justo se alegrará quando vir a vingança; lavará os seus pés no sangue do ímpio.

Salmos 58:10

 

— Então? — A voz de Zia, companheira de Erem, trouxe-o de volta à realidade. O rosto dela, uma pequena mancha de lama branca emoldurada pela enorme cabeleira negra, estava irreconhecível. Ela insistiu batendo com o cabo da lança no chão. — É agora ou nunca, temos de aproveitar que estão ainda a dormir.

— Eu sei. — Erem estava reticente. — Não sabemos quantos estão ali, pergunto-me se não seria melhor ir fazendo algumas emboscadas aos grupos de caça deles e matando-os gradualmente. Se o número deles reduzir, de certeza se mudarão para longe.

— Isso exigirá tê-los sempre vigiados. — Considerou Lemi. — Não somos assim tantos para fazer isso.

— Não vamos vingar o meu irmão? — Naci parecia estar sempre zangado, mesmo sem a justificação que tinha agora. — Não quero saber se fogem ou não. Mataram Nuri; por um dos nossos, terão de morrer pelo menos três deles! — Ele ostentava ainda as marcas da luta, principalmente um enorme hematoma que quase lhe fechava um dos olhos.

— É verdade que nunca mataram antes… sempre se limitaram a fazer-nos fugir e levavam a caça. — Considerou Asil. — Tu e o Nuri é que reagiram quando eles tentaram levar a gazela. Depois tivemos de atacar todos para vos ajudar e mesmo comigo, Civam e Ediz, todos os cinco, não conseguimos vencer apenas quatro deles.

— Querias fugir e deixá-los levar a comida do clã? — Naci olhou-o incrédulo. — Nuri estava certo, hoje tiram-nos a caça, amanhã roubam-nos dentro da própria aldeia.

— Basta! — Exigiu Lemi. — Fazemos muito barulho.

— Mesmo assim, — Cortou nervosamente Su, a mulher de Naci. — não sabemos contra quantos vamos lutar. — Ela penteou um dos lados da longa e escorrida cabeleira negra, soltando as folhas que estavam presas nela. — Se forem mais que nós…

— Quem não quiser vir que vá embora agora! — Exigiu Zia com os dentes cerrados. — Estamos a perder o tempo que precisamos. Mesmo que se vão todos embora, eu ficarei e haverei de mandar para o mundo das sombras pelo menos um.

— Eu também fico! — Afirmou Naci batendo com a lança no chão e logo secundado pelos seus irmãos Tekin e Asil.

— Parem com isso! — Ordenou Erem. — Claro que temos de ir todos. Vamos vingar o meu filho e dar-lhes uma lição que não esqueçam. Temos de entrar e matar os que nos aparecerem pela frente e, ao meu sinal, ou de Lemi, fugimos de novo para este sítio onde estamos agora. Aqui, esperamos a ver se nos tentam seguir, antes de regressar às nossas casas. Perceberão que a sua ação teve consequências e deverá ensiná-los a manterem a distância ou mudarem-se para longe.

Começaram a descer da crista ocultando-se nos tufos de vegetação. De súbito, Lemi percebeu movimento na entrada da gruta e fez um gesto aos outros. Habituados a serem comandados nas caçadas, imobilizaram-se em silêncio.

Na enorme abertura surgira um dos homens-macaco. Era baixo, como todos os da sua espécie, com os braços e as pernas cabeludos que pareciam troncos de árvore, grossos e duros. Cada soco daqueles punhos nodosos e desproporcionais tinha a força de uma pedrada. O cabelo hirsuto, indistinguível das barbas que lhe caíam pelo peito, tombava sobre o rosto quadrado de celhas negras e grossas que encimavam a arcada supraciliar saliente. Os olhos pequenos e vivos estavam semicerrados quando o indivíduo se abeirou da borda, soltou um ruidoso traque e começou a urinar algures do meio das peles que o envolviam. Assim que terminou, esfregou os olhos, soltou uns roncos preguiçosos e olhou em volta, farejando o ar. Satisfeito com a avaliação, regressou ao interior coçando as nádegas.

Em resposta a novo sinal, todo o grupo reiniciou a progressão começando a subir a encosta enquanto dois deles ficavam para trás certificando-se de que não havia o perigo de serem atacados pelas costas. Quase não era preciso falar, todos eram experientes caçadores e estavam bem habituados a vigiar as costas uns dos outros para não serem surpreendidos por algum outro predador quando caçavam. No ano anterior, um dos filhos de Lemi fora morto por um leão quando corria atrás de uma corça e um cunhado de Zia, acabara por morrer na aldeia vítima dos ferimentos provocados por um urso.

Naci, sempre mais arrojado, lançou-se na escalada primeiro que os outros, logo seguido do irmão Tekin e de Fuat um dos filhos mais novos de Lemi, ansiosos por mostrar o seu valor. A subida não foi difícil; os invasores usaram os pequenos socalcos, invisíveis a partir de baixo, que deviam ser usados pelos habitantes da gruta e rapidamente Tekin e Fuat ultrapassaram Naci, chegando ao patamar à frente de todos os outros.

Lemi soltou um pequeno silvo para que os dois mais jovens se detivessem, enquanto Zia o ultrapassava também. Ele era o mais velho e ficava para último. Os dois rapazes desapareceram na borda do penhasco e já Naci e uma das cunhadas de Erem os seguiram. No momento seguinte ouviram-se vozes e gritos irados que ecoaram vale e espantaram um bando de aves de uma das árvores que crescia inclinada sobre o barranco. Já Erem, um dos seus irmãos, Zia e um irmão dela se guindavam para a plataforma. Havia luta na entrada da gruta e um corpo voou sobre os que ainda escalavam, batendo no fundo da ravina com um baque surdo; Lemi reconheceu o seu filho Fuat. À medida que mais invasores atingiam o patamar, a gritaria intensificava-se; dois corpos agarrados tombaram do patamar e rebolaram na encosta arrastando com eles dois dos invasores que descansavam na subida. Quase derrubaram Lemi que se viu de repente o único na face do barranco. Havia cinco corpos no fundo, e só um era dos homens-macaco.

Sem fôlego para subir mais depressa e desesperado por ir ajudar os companheiros, Lemi esforçava-se ao máximo. Um dos inimigos voou por cima dele com um grito silenciando-se em simultâneo com o baque no solo duro. Várias pedras e algumas lanças caíram em seguida.

Depois da sua subida imprudente, Fuat, Tekin e Naci, viram-se num patamar, meio direito, com cerca de dez metros até à entrada da gruta, de onde saíam quatro homens-macaco gritando de forma alarmante.

Um deles gritou-lhes incompreensivelmente, mas o outro disse com clareza: —Vão embora!

Naci não estava ali para conversar; atirou e cravou a sua lança no pescoço do que falara a língua deles. Tekin imitou o irmão, mas falhou o alvo que se esquivou agilmente. Os três defensores restantes atacaram os invasores de mãos nuas e soltando gritos selvagens.

Fuat não conseguiu usar a lança, partida de imediato pelos braços fortes do oponente que logo o agarrou pelo pescoço. Sem conseguir opor-se-lhe, o filho de Lemi conseguiu pegar a faca de pedra da sua bolsa e cravou-a várias vezes no ventre musculoso do homem-macaco. Este soltou um grito lancinante e empurrou o infeliz do penhasco.

Tekin, esquivou-se habilmente do ataque do seu inimigo e foi mais feliz com a faca do que com a lança, conseguindo espetá-la profundamente entre as costelas do outro.

Havia já mais companheiros a subir ao patamar e a ajudar Naci que, caído no chão, era alvo dos socos impiedosos do seu oponente. Zia cravou-lhe a lança nas costas e um companheiro pontapeou-o no rosto assim que ele caiu, espetando-o várias vezes no peito a seguir.

O homem-macaco que Tekin espetara soltou um enorme grito de fúria e agarrou-o pelo tronco, prendendo-lhe os braços tentando esmagá-lo. Asil correu em socorro do irmão e espetou a lança nas costas do inimigo que, na tentativa de fuga, precipitou-se com a sua presa no vazio.

Da entrada da gruta soavam novos gritos e vários homens e mulheres-macaco corriam na direção deles, enquanto outros atiravam pedras e lanças grosseiras: eram mais de vinte! Mais dois dos atacantes tombaram feridos.

Eda e Ezgi, respetivamente cunhadas de Erem e Zia usaram as fundas em que eram exímias e derrubaram alguns dos defensores, causando a confusão entre os restantes. As lanças bem apontadas de Erem e dos outros causaram mais vítimas e pararam a investida, com exceção de um deles que se chegou perto o suficiente do grupo invasor para sofrer vários golpes de e tombar imóvel. Havia agora vários corpos caídos na área da esplanada.

Os defensores, refugiados na entrada da caverna, atiraram nova chuva de pedras e lanças com pouco efeito, tirando alguns feridos ligeiros. Eda e Ezgi causaram novas vítimas com as suas fundas que tinham um alcance muito maior, fazendo os inimigos recuarem ainda mais para o interior. Lemi chegava nesse momento à borda do patamar.

Erem tentava assimilar rapidamente a situação complicada em que se encontravam; não podiam investir, pois, os outros eram em número superior e eram precisos vários para liquidar apenas um deles, além disso, já tinham vários feridos e seriam rapidamente suplantados. — Desçam depressa, vamos, fujam! — Gritou decidido na borda do patamar. — Eda, atira-lhes mais pedras, mantém-nos lá dentro. Cemil, ajuda-me, atiremos-lhes com as lanças deles.

Enquanto os restantes desciam e ajudavam os feridos, um pequeno grupo de quatro tentou manter os inimigos à distância, mas as lanças eram mais pesadas e mais toscas, caíam quase sem força ou batiam inutilmente nas paredes da gruta.

Vendo que o número de atacantes era irrisório, os homens-macaco começaram timidamente a sair da gruta atirando mais pedras e os quatro resistentes tiveram de se lançar na descida de forma meio atabalhoada. No fundo do barranco, já os outros acabavam com um dos inimigos que ainda estava vivo e arrastavam os seus mortos e feridos pela encosta contrária.

Enquanto Eda descia, Asli conseguia atirar com a funda algumas pedras bem colocadas para assobiarem à cabeça dos defensores que se atreveram a espreitar na borda do penhasco, mas isso não impediu que uma chuva de grandes rebos caísse sobre eles. Um dos projéteis acertou com força sobre as costas e ombro de Erem fazendo-o cair e foi Cemil, seu irmão, quem o ajudou a refugiar-se com os restantes atrás da crista onde haviam iniciado o desgraçado ataque.

Gritos de vitória e de desafio dos defensores, postados na borda do penhasco, faziam-se ouvir.

Cheio de dores, Erem olhou para os companheiros; Fuat e Alev estavam mortos, Tekin estava bastante ferido e teria de ser carregado, quase todos ostentavam ferimentos mais ou menos ligeiros, com exceção de Lemi que estava pálido de cansaço, ofegante e com a cabeça entre os joelhos.

Apesar de terem causado bastantes vítimas, o resultado era pior para eles. Os homens-macacos ganharam o combate.

 

 

Clã do Leão da Montanha

Parte 2 – O Clã do Leão da Montanha

4 - Lambendo as feridas 

Parte 4 – Lambendo as feridas

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

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2 comments:

Everson disse...

Olá Manuel, bom dia!

Acabei de re-ler esta primeira parte da estória.
Achei interessante e vou continuar os próximos episódios em seguida.
Confesso ter de buscar algumas palavras que não fazem parte do vocabulário habitual de um brasileiro. Assim, sempre aprendo algo com seu estilo de escrever. Obrigado!
Fique bem sempre e aquele abraço.
Everson

Fernando Ventura Morgado disse...

Leio este texto em modo cinematográfico, porque é quase um guião a narrativa destes confrontos entre clãs. No meio do caos, consigo reter alguma beleza e amor; a necessidade, a determinação e a vingança dão personalidade a estes seres antigos, do tempo em que quase todos os humanos se pareciam com primatas.
Retenho a valentia, a heroicidade e a sabedoria destes humanos, tal como se diz na gíria – “a necessidade aguça o engenho”.
Mais um belo texto nascido no mundo fantástico do Manuel Amaro Mendonça. Parabéns.

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