segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Os mortos do meu Facebook



Há uns dias, numa das suas muitas funcionalidades, o Facebook trouxe-me uma memória de há uns anos atrás: a avaliação muito positiva que uma boa amiga fez da leitura de um dos meus livros... poderia ser uma memória feliz, não fosse dar-se o caso dessa amiga ter falecido há poucos meses.
Senti um aperto no coração e verti uma lágrima envergonhada (porque os homens não choram, dizem por aí). Entrei no perfil da minha amiga, que continuava ativo e estive a ver algumas fotografias dela e de alguns amigos em comum.
Depois lembrei-me de procurar por outros que comigo privaram e que já passaram a ténue, mas opaca, fronteira que separa a vida da morte. Ali encontrei nomes queridos, gente jovem e outros assim assim, desaparecidos do mundo dos vivos, mas ainda presentes no mundo virtual do “Livro dos Rostos”.
Revisitei dores antigas e senti a saudade dos sorrisos daqueles que partiram, imortalizados para sempre em pixels coloridos, depositados numa nuvem indistinta de exabytes, que ninguém sabe exatamente onde mora.
Recordei a dor pessoal, nas semanas seguintes ao desaparecimento do meu próprio pai, cada vez que via o seu saudoso rosto na minha lista de amigos ou em antigas partilhas, até pedirmos a eliminação do seu perfil.
O Facebook não está preparado para a morte e os rostos dos que se foram, ali continuam, sorridentes e imortais, ferindo como setas os corações desprevenidos daqueles que os amavam. Continua a mandar notificações dos aniversários, que já não cumprem e a recordar-nos de tempos cheios de vida em que nos falavam, ou comentávamos as mesmas publicações.
Lentamente, localizei um a um estes resquícios de tempos felizes, que já se foram e fui removendo as amizades, como que libertando as amarras que prendiam uma existência que já não o era a outra que tenta subsistir.
Adeus Sandra, amiga e leitora fervorosa, adeus Rui, tranquilo, de humor subtil, adeus Pires, divertido e com pressa de viver, adeus Teresa, temperamento desconfiado, mas de coração grande, adeus Virgínia de riso fácil, que via sempre o lado divertido de tudo.
Como se estivesse no fundo de um mar escuro, vendo a luz rebrilhando lá muito longe, na superfície, libertei cada um dos meus amigos que saíam a “esvoaçar”, livres e flutuantes, em direção à luz.

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sábado, 29 de agosto de 2020

Campónios e Extraterrestres

 


O sol principiava grandiosamente a aparecer no topo das montanhas a leste. Raios de fogo projetavam-se em todas as direções, anunciando a chegada do astro-rei e o início de um novo dia.

Caminhando no trilho calcado que seguia entre as árvores, o homem conhecido por Tone Canhoto, bufava com as costas carregadas por um grande saco de lona. Trazia um chapéu surrado e envergava um casaco demasiado grande. À cinta, no pedaço de couro que lhe segurava as calças, que não chegavam às botas cansadas, uma faca e a coronha decorada de uma pistola de fecho de pederneira espreitavam.

Repentinamente, apercebeu-se que não seguia ninguém atrás dele e pousou o saco no chão, olhando em volta, confundido.

— Xico…? — Chamou quase a medo. — Zé?

Ninguém respondia e não havia meio de aparecer alguém, nos cerca de cinquenta metros de caminho que conseguia ver até à curva.

— Raios partam… — Gemeu baixinho. — Onde demónios se encafuaram aqueles dois?

Com esforço, tornou a carregar o saco nas costas e avançou em sentido contrário, a procurar os companheiros.

— Vais morrer!!! — Uma voz forte gritou de entre as árvores, enquanto dois vultos lhe saltam ao caminho.

— Credo, em Cruz, mãe de Deus! — O Canhoto arregalou os olhos de susto e soltou um grito estrangulado, antes de reconhecer os amigos, que riam do terror que lhe haviam infligido. — Seus gandulos, artajeiros! Quase que me esfoiro todo de susto!

— Só queria que visses a tua fuça! — O mais magro do trio, chorava a rir encostado a uma árvore.

— Mijaste-te, maninho? — Também o mais forte, a quem chamavam de Xico Zangão, tinha lágrimas de tanto gargalhar.

— Ah, vão à merda. Isto não se faz. — O Canhoto ainda tinha as pernas a tremer.

— Coitadinho… — O mais magro, conhecido por Zé Patranhas, fez menção de o acarinhar, mas foi prontamente sacudido.

— Sai-te daqui! Pincha-Grilos de um raio! Andas sempre à turra e à maça com o meu irmão, mas me fazerem galdrumeiras, já se ajuntam!

— Então, Tone. — Tornou o Xico. — Não sejas assim! Borraste as ceroulas foi? — Soltou nova gargalhada em uníssono com o Zé.

— Raio que vos pele! — Amuou Tone, alombando novamente o saco e virando-lhes as costas, retomando o caminho.

Os outros dois, ainda a rir, correram a buscar os seus sacos, que esconderam no mato e tornaram para junto do companheiro, para o atazanar mais um pouco.

— Valeu a pena assaltar a casa do velho Menezes ou não valeu? — O Patranhas queria reconhecimento. — O Badocha deu-nos uma boa dica.

— Até gostava de voltar lá… — Riu o Canhoto. — A criadita era bem engraçada.

— Mesmo a mulher do Menezes… Vejam lá aquele velho asqueroso com uma lasca daquelas! — Acrescentou o Zangão. — E sorria-se toda para mim, parecia até que gostava de ser assaltada.

— E gostava! — Gargalhou o Patranhas. — Estava toda consolada, que eu estava a apalpar-lhe as cascas!

— Mentiroso! — Xico enfureceu-se. — Pantominas de um raio…

— Vá, calem-se lá. Já vão começar novamente? — Interveio Tone, conciliador. — Temos aqui um bom saque para dividir e ir vender ao Galego de Chaves. Ou só se juntam contra mim?

Ai, é verdade! — Xico soltou uma sonora gargalhada. — Precisavas mesmo ver as tuas ventas de cagaço!

Enquanto estavam nestas brincadeiras, um enorme objeto voador, fortemente iluminado, passou a baixa altitude, quase roçando as copas das arvores e levantando uma nuvem de poeira, folhas e ramos soltos. Logo de seguida, o silvo grave que perseguia o objeto, ensurdeceu-os por segundos, até tudo se quedar num silêncio pesado. Uma enorme árvore seca caiu mais à frente.

— Que demónios foi isto? — Perguntou o Patranhas assustadíssimo.

— Vinha a voar, com muita luz! Era um anjo! — Exclamou o Canhoto.

— Com aquele barulho dos infernos?!? — Discordou o Zangão. — Era na certa obra do mafarrico!

— Vamos embora, depressa. — O Zé não tirava os olhos da direção tomada pelo estranho objeto.

— Acho que está ali, por trás daquelas árvores. Vêm-se as luzes. — Apontou Tone. — Deve estar naquela clareira que há ali abaixo.

— Vou lá espreitar. — Anunciou o Zangão.

— É melhor não… — O Patranhas tremia visivelmente. — Anjo ou demónio, pode não gostar de ser visto.

— Sim, acho que seja lá o que for, devemos deixá-lo em paz… — Concordou o Canhoto, para as costas do irmão, que abandonara o saco no chão e já se pusera a caminho.

— Oh, raios me partam, lá vai ele meter-nos em sarilhos! — A voz do Zé também tremia. — Com homens grandes ou mal-encarados eu cá me entendo, mas com estas coisas, não gosto nada de estar por perto.

Como o companheiro os ignorasse e, de varapau na mão, descesse o carreiro na direção da clareira, os outros dois olharam um para o outro, indecisos.

— É meu irmão… — Desculpou-se o Canhoto, empunhando a sua pistola.

Sozinho no caminho, o Patranhas olhou em volta, para as árvores ainda envolvidas nas sombras da madrugada. Ficar ali, enquanto eles iam, também não lhe parecia grande ideia. Num resmungar choramingado, ocultou na vegetação os sacos abandonados no caminho e correu atrás dos companheiros. Tirou a pistola do cinto e armou-a. Eles já estavam escondidos na vegetação, fora da estrada e fizeram-lhe o gesto para que se aproximasse em silêncio.

Para além das giestas e ramos onde se acoitavam, existia uma enorme clareira de mato rasteiro, onde se arrastava um pequeno ribeiro, que se tornava um colosso com as chuvas invernais. Eles chamavam-lhe a praça dos recos bravos, pois, normalmente, viam-se imensos por ali. Grande parte da clareira estava ocupada pelo que parecia ser uma imensa, luminosa e fumegante casa sem janelas. Havia forte emanação de calor a partir da inusitada construção.

Quando o Patranhas ia manifestar o seu espanto, o Zangão voltou a gesticular para que fizesse silêncio e apontou para o lado direito, onde estavam quatro pequenas pessoas, vestindo o que parecia ser uma roupa cinzenta, que os cobria da cabeça aos pés.

Os elementos do pequeno e estranho grupo gesticulavam entre eles, apontando o céu e emitindo assobios e estalidos. Com o que parecia um pequeno graveto luminoso, um deles começou a escrevinhar em pleno ar; o extraordinário, é que os gatafunhos apareciam e ficavam estáticos na frente dele. Um outro, apagava alguns símbolos e substituía-os, numa aparente correção, enquanto tagarelavam animadamente.

— Aquela porcaria pode valer uma pipa de moedas! — Sussurrou o Canhoto, olhando espantado para os outros dois.

— Vamos botar-nos a eles. — Sentenciou o Zangão. — Aparecemos-lhes de três lados diferentes. Eu quero uma caneta daquelas, como não sei escrever, pode ser que com ela não seja preciso.

— Mas… já viste? — Observou o Patranhas, pouco animado. — Eles são tão estranhos… que tipo de bicho ou coisa são eles?

— São de fora, que queres? Não podem usar os paramentos que quiserem? — Simplificou o Zangão, sussurrando. — Por mim, podiam vestir a albarda do cavalo, ou a sotaina do prior. — E continuou como quem fala com crianças. — Aparecemos; tu e o meu irmão apontam-lhes as pistolas, eu dou uma barduada ou duas, se for necessário, pegamos o que queremos e chispamos daqui para fora. Agora vamos!

— Xico. — Também Tone estava preocupado. — Aquilo parece mesmo bruxaria…

Enquanto estão neste debate, um dos estranhos pega num pequeno retângulo e começa, como que olhando através dele, efetuando um semicírculo em volta da sua localização. Quando fica alinhado com a posição em que se encontravam os nossos assaltantes, pára e chama o companheiro com um gesto. Os dois olham pelo retângulo e depois sem ele. Os três amigos perceberam que tinham, de alguma maneira, sido detetados.

— Tem de ser agora, já! — Ordenou Xico erguendo-se e caminhando temerariamente na direção dos estranhos, de varapau em punho.

— Maldição! — Exclamou o Canhoto, erguendo-se também, mas engatilhando a pistola.

— Lá vamos nós arranjar problemas por causa deste torgueiro! — Gemeu Zé, seguindo os companheiros.

— Santa manhã, amigos! — Exclamou o Zangão para os quatro surpreendidos estranhos. — Tendes aí uma casa muito bonita.

— E também umas coisas interessantes. — Complementou Tone. — Vamos aliviar-vos do peso delas.

Os símbolos flutuantes desapareceram e os estrangeiros cinzentos começaram a gesticular e a emitir os assobios e estalidos entre eles, apontando os recém-chegados.

Percebendo a ameaça, o que estivera a escrever no ar, fez um pequeno gesto com a "caneta" e as pistolas dos dois assaltantes saltaram-lhes das mãos e colaram-se ao chão milagrosamente. O mesmo caminho seguiu o punhal do Canhoto que, no trajeto, cortou o pedaço de couro que lhes servia de cinto, deixando-o literalmente com as calças na mão. Não aconteceu o mesmo ao Patranhas, porque o cinturão era mais resistente e ele conseguiu livrar-se da faca irresistivelmente atraída para o solo. O Zangão viu-se de repente o único com uma arma e carregou sobre eles soltando um chorrilho de palavrões.

Outro dos cinzentos conseguiu, do que parecia uma mão vazia, atirar uma rede de fios finíssimos, que crescia à medida que voava na direção do atacante. A teia caiu sobre o assaltante e colou-se fortemente aos braços e às pernas fazendo-o cair.

Com o elemento mais forte imobilizado, o Patranhas e o Canhoto perceberam que precisavam de uma nova estratégia. Após uma fração de segundo de hesitação, fugiram para o mato.

O cinzento que atirara a teia, obviamente o chefe, fez um gesto aos restantes, que saíram a correr atrás dos fugitivos.

— Solta-me desta merda, espantalho! — Gritava o Zangão debatendo-se.

O chefe ignorava-o. Olhava para o pequeno retângulo com que os localizara e emitia os ruídos da sua fala, dando instruções aos companheiros.

— Quando me soltar desta bosta, vai levar tantas… — Insistia o Zangão.

O cinzento dignou-se a deitar-lhe um olhar do seu rosto inexpressivo, que quase não tinha nariz entre os enormes olhos negros e cuja boca era pouco mais do que uma fissura sem lábios. Apontou-lhe a palma da mão e saiu outra das teias de aranha, mais pequena, que se colou na cara do furioso Xico. Com a mão esquelética de quatro dedos, compôs a cola sobre a boca do prisioneiro, de forma a reduzir os seus gritos a irados grunhidos. Após isso, ergueu elegantemente a mão atravessada sobre a sua própria boca, numa caricatura do sinal de silêncio. Depois regressou ao acompanhamento da caçada.

Não tardou que os três cinzentos regressassem com os dois aterrorizados amigos, o Canhoto ainda a segurar as calças. Mas é nesse momento que se dá a reviravolta; o furioso Zangão está a conseguir soltar-se das teias que o prendiam. Os incrédulos cinzentos olham para o homem a cortar os fios com uma faca.

— Vocês estão tão, mas tão f**! — Exclamou Xico empunhando a arma. — Isto! — Exibiu triunfalmente. — É uma lâmina de osso, não de metal!

Mas mesmo assim, orgulhosamente, colocou a arma no cinto e pegou no bordão.

— Agora vou mostrar-vos com quantos paus se faz uma canoa! — Gritou Zangão começando a perseguir os apavorados cinzentos, que emitiam assobios aflitos.

Depois de uma curta, mas intensa perseguição, onde eles conseguiram furtar-se por pouco aos golpes de varapau, os quatro estranhos conseguiram reunir-se junto da estrutura e uma luz azul envolveu-os.

As pauladas de Xico estouravam ruidosamente sobre a luz azul, mas não conseguiam atingir os cinzentos, que mesmo assim se encolhiam de medo.

Tone e Quim, finalmente se recuperavam do medo e, vendo as criaturas encurraladas, atiravam-lhes com o que podiam, embora tudo fosse repulso pelo halo azul. O chefe das criaturas parecia escrever febrilmente no retângulo que já antes usara.

Por fim, abriu-se uma porta atrás dos cinzentos, de onde provinha uma fortíssima luz branca e eles correram de imediato para ela. Assim que a porta se fechou, o azul que os envolvia desapareceu e o Zangão conseguiu aproximar-se estrutura. Estranhou não ser metal nem madeira, nem nada que reconhecesse, mas era sólido o suficiente para o seu bordão e ele usou-o por várias vezes.

— Saiam daí, seus vassouros, venham cá para fora! — Gritava Xico. — Covardes!

Repentinamente, toda a estrutura ficou envolvida pela luz azul e os três amigos foram projetados para trás com violência. De seguida levantou voo silenciosamente e desapareceu em segundos no céu azul.

— Eu não disse que era bruxaria? — Gemeu o Canhoto sentado no chão. — Escapamos de boa.

— Escapamos? — O Zangão olhou para o irmão. — Eles é que nem sabem do que se safaram! Estiveram por um pelo de levar um chuveiro de barduadas, que tão cedo não esqueceriam!

— Este raivoso do catano! — Exclamou o Patranhas. — Está sempre a meter-nos em alhadas!

— Raivoso? — O Zangão ergueu-se com o varapau em riste. — Seu aldrúbias canastrão! Olha que eu…

— Lá estão eles outra vez! — O canhoto levantou-se e virou costas aos dois amigos que discutiam acaloradamente.

 

 

(Nota do autor: Este acontecimento deu-se algures no século XIX, mas acredito que, por causa dele, são pouco vulgares em Portugal os fenómenos envolvendo extraterrestres ou OVNIs)

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