domingo, 28 de maio de 2023

Olho por Olho

 



Na Madrugada dos Tempos – Parte 10    

A guerra é, a princípio, a esperança de que a vida nos venha a correr melhor,

a seguir, a expectativa de que corra pior aos outros,

depois, a satisfação por ela também não correr melhor aos outros, e,

mais tarde, a surpresa por ela correr pior a ambos.

Karl Kraus, Escritor austríaco

  (1874-1936)

Partiram ainda noite escura, em silêncio, uma extensa fila com vinte e dois elementos que marchava com dificuldade sobre a neve fofa debaixo de um ameaçador céu de chumbo. Entre as lanças empunhadas pela maioria destacavam-se os dois arcos de madeira e osso, fabricados por Alim e Beki, os nómadas adotados na aldeia. Este último e também Dogan, sobrinho-neto de Erem eram exímios atiradores e tornaram-se uma mais-valia entre os caçadores, permitindo-lhes matar ou ferir as presas, surpreendendo-as a grande distância.

À cabeça do grupo seguiam Erem e Naci. Se o primeiro seguia de cenho carregado e apreensivo, o segundo exibia um ar de satisfação feroz. Atrás seguiam os restantes, maioritariamente homens, escolhidos a dedo por Lemi que, com exceção dos estrangeiros, conhecia intimamente cada um deles a quem ensinara as artes da caça desde crianças. As quatro mulheres escolhidas eram Ezgi e Eda, que já tinham revelado a sua mestria com a funda no primeiro ataque e duas outras estrangeiras, empunhando lanças e que quase só se distinguiam dos homens por não terem barba. Zia não acompanhou o grupo, para desilusão desta; o chefe convenceu-a a ficar com Nehir e Asil, porque decidira que desta vez não arriscaria que toda a governação do clã se perdesse de uma vez só.

A luz da manhã já iluminava, tristonha, os montes de cristas nevadas e a paisagem ondulante de vegetação rasteira coberta por um manto branco. Esta região distinguia-se dos planaltos onde o clã vivia, era agreste, com pouquíssimas árvores e cortada por profundas brechas ou montes desproporcionais. Os deuses deviam estar furiosos quando fizeram aquela parte do mundo e via-se que era um terreno de exílio para uma espécie que se refugiava, a terra que ninguém queria.

Num autêntico “déjà-vu”, o grupo reuniu-se no promontório que permitia uma ampla vista da entrada da gruta, mas que estava separado desta por uma funda garganta. Aquele era um bom ponto de observação, conseguiam ver, não só o seu objetivo, como uma grande distância em redor… o local ideal para uma sentinela. As pegadas recentes na neve fofa testemunhavam que houve atividade ali nas últimas horas. Havia a forte possibilidade de terem sido avistados.

Erem observou atentamente todos os pormenores, enquanto lamentava não ter trazido Lemi, o seu indiscutível estratega. Ao fim de alguns segundos fez um gesto aos outros e todos se afastaram da crista para uma zona onde não seriam vistos pelo inimigo.

O chefe ficou em silêncio fitando o chão, formados em círculo à sua volta, os outros respeitavam a introspeção. Depois ele ergueu os olhos para cada um deles, fixando-se nos dois archeiros.

— Acham que conseguem atingir a entrada da gruta desde este promontório? — Atirou Erem repentinamente. — Derrubar quem apareça à entrada?

Dogan, um dos mais jovens do grupo, fez uma expressão de incerteza, mas Beki, o mais velho dos filhos do nómada Alim, acenou com a cabeça afirmativamente.

— Então está decidido. — O chefe concluiu. — Desta vez não seremos surpreendidos antes de estarmos todos no planalto de entrada. Eles manterão a vigilância, — explicou dirigindo-se aos outros — e se algum daqueles monstros sair, será morto ou pelo menos afugentado. Vamos escalar a parede até ao planalto e ninguém — aqui olhou conspicuamente para Naci —, repito, ninguém, ataca sem todos terminarem a subida. Subiremos em linhas de quatro, os mais novos e fortes à frente e ajudam os outros assim que chegarem. — Tomando a dianteira, ordenou: — Agora vamos!

Os dois archeiros tomaram posição, o olhar fixo na entrada da gruta, sem descurar os companheiros que desciam a garganta.

Uma águia piou no alto, na sua busca por alguma presa que se aventurasse fora da toca em cima da neve fofa. Tirando isso, não se avistava vivalma, o que começava a ser estranho. Era dia claro e aparentemente ninguém saía da gruta… esperavam que, pelo menos os caçadores, já estivessem fora há muito.

Foram estes pensamentos que fizeram Beki olhar pelas redondezas dos seus companheiros e detetar o pequeno grupo de homens-macaco que, no fundo da garganta, saía de uma fenda na parede e avançava na direção deles. Gritou o alarme e começou a enviar dardos na direção dos inimigos. A primeira flecha cravou-se no tronco de um e a segunda no pescoço de outro, os restantes inimigos, porém, saíram da vista do atirador refugiando-se na parede contrária. Uma última flecha partiu-se contra as pedras; Dogan conseguira finalmente vencer as tremuras e atirar o primeiro dardo.

Naci, Fikri, Altan e dois dos estrangeiros, à cabeça dos restantes, correram na direção indicada por Beki. Gritos de guerra e dor ecoavam no fundo da garganta fora da vista dos aflitos archeiros. Por fim, à medida que o restolho da refrega reduzia, viram um dos mais jovens estrangeiros a fugir perseguido de perto por um homem-macaco. Beki armou o arco e preparava-se para desfechar sobre o inimigo quando se apercebeu que Fikri corria logo a seguir. O corpulento inimigo estava quase a deitar as mãos ao franzino rapaz quando a lança do filho de Lemi cravou-se com um baque surdo nas costas dele, derrubando-o. O fugitivo parou imediatamente de correr e, fazendo jus à sede vingativa que os movia a todos, saltou sobre o homem-macaco tombado e começou a espetá-lo furiosamente com a faca de sílex. Era o filho de uma das mulheres assassinadas no assalto à aldeia. Fikri arrancou o seu dardo das costas do inimigo e ergueu-o num gesto de triunfo para os dois archeiros. Lentamente, os atacantes reuniram-se no fundo da garganta, havia feridos, mas não parecia faltar ninguém.

Não havia agora dúvidas de que haviam sido avistados e os homens-macaco já estavam à espera do ataque. Deixaram aqueles fora da gruta para os apanhar pelas costas enquanto subiam e decerto haveria mais surpresas pela frente.

Rapidamente e sem hesitação, todos se lançaram na escalada. Os dois archeiros mantinham-se vigilantes entre a observação atenta da entrada da gruta e a preocupação dos companheiros que subiam com esforço. Conseguiram perceber que alguém espreitava rapidamente da abertura escura e avisaram por gestos os primeiros que concluíram a subida, invariavelmente Naci e Fikri.

Enquanto os archeiros concentravam a sua atenção nos companheiros, um restolho fê-los voltar-se de supetão; um homem-macaco erguia uma temível clava sobre Dogan. Tinha a cabeça e o rosto coberto de sangue pingando profusamente da haste partida de uma flecha cravada logo abaixo do ombro esquerdo. Beki, que nunca deixara de ter um dardo a postos no seu arco, lançou-o imediatamente sobre o inimigo, mas demasiado tarde para evitar que este descarregasse a moca em cima do companheiro. O infeliz Dogan ainda tentou esquivar-se da pancada, mas esta atingiu-o com violência sobre a clavícula e o braço com que se protegeu. O arco que empunhava desfez-se em pedaços quando o jovem rolou sobre ele.

Tendo uma das ameaças eliminada, o homem-macaco, agora com nova flecha cravada no pescoço, soltou um grunhido inumano ao mesmo tempo que levantava a clava para atacar o outro. Beki recebeu-o atabalhoadamente com novo dardo no peito, mas não parou o ataque. Dogan, tombado aos pés do inimigo e com um braço sem ação, apanhou uma pedra e feriu-o várias vezes na parte desprotegida das pernas entre as botas de pele e a túnica de couro que envergava. Surpreendido pela dor inesperada, o formidável adversário saltou para o lado, pronto para lhe esmagar a cabeça, mas estes segundos foram preciosos para Beki empunhar a sua faca de cobre e saltar sobre ele. Sem espaço para manobrar a clava e sem poder fazer mais do que tentar esmagar o inimigo que se colava a ele, o homem-macaco caiu e debateu-se, enquanto Beki lhe cravava sucessivamente a adaga até aos copos, procurando atingir o coração. Dogan conseguiu arrastar-se até junto dos contendores e rasgou-lhe a garganta com a faca de sílex. Só assim terminou o combate.

Beki ergueu-se ofegante e ajudou o companheiro, que se retorcia com dores, a sentar-se mais comodamente. Aparentava ter o úmero e a clavícula partidos e fora um esforço sobre-humano para se arrastar e ajudá-lo. Devia-lhe a vida com toda a certeza. Depois olhou para os restantes companheiros que terminavam a escalada, ignorando a luta de vida ou morte que acabara de ser travada.

No patamar de acesso à gruta, os atacantes ajudaram os últimos a terminar a escalada e começaram a formar uma linha de cada lado da entrada. Começavam a tombar suavemente diáfanos flocos que pousavam sobre a neve calcada e suja do chão. Não se escutava qualquer ruído do interior escuro e intimidante. Um dos estrangeiros, ansioso por mostrar-se mais valente que os restantes ou incapaz de suportar a expetativa, avançou para a goela negra, tendo sido presenteado com uma lança no peito que o projetou para fora. Tombou numa posição pouco natural, com o peso do dardo a curvar-lhe o corpo para trás, os olhos esbugalhados perderam o brilho rapidamente… uma mancha rubra espalhou-se imediatamente sobre o tapete alvo.

Desta vez, Naci tivera o bom senso de não se precipitar, mas mais dois corajosos jovens se lançaram para a abertura hiante para serem confrontados de imediato com um homem-macaco que derrubou ambos com possantes pancadas da clava que empunhava. Por estarem demasiado próximos, nenhum deles teve tempo de usar a lança que empunhava. Este foi o sinal, porém, para Erem gritar para o resto do grupo se lançar decididamente no ataque. Uns ainda com as lanças, outros, optando por armas mais manejáveis em lugares estreitos, largaram-nas e empunharam os machados de sílex que traziam à cintura.

Chocados com a diferença entre a luz exterior e a penumbra da gruta, os primeiros invasores tiveram de combater por instinto com os quatro inimigos que os receberam com clavas e lanças. A vaga inicial quase foi travada, não fosse Naci espetar a sua lança, por cima do ombro de um dos companheiros, diretamente no pescoço de um dos defensores. Imitando a técnica, os seus companheiros eliminaram rapidamente a resistência e passaram por cima de mortos e feridos. Com os machados e as facas, acabaram violenta e sangrentamente com quantos inimigos tombados depararam. A presença dos amigos feridos e mortos só serviram para aumentar o ódio e raiva que sentiam. Ninguém ficou para os ajudar, todos respingados e inebriados de sangue, como demónios ululantes, atravessaram a estreita entrada e desembocaram numa ampla gruta fracamente iluminada pela fogueira que ardia sozinha no centro. As silhuetas de vários homens-macaco movimentavam-se a esconder-se nas sombras ou nas cavidades em redor.

Soltando gritos horrendos, a horda demoníaca lançou-se como um rio que desagua num lago de águas calmas. Para ambos os lados partiram homens e mulheres com os machados ensanguentados em punho. Atacaram todas as figuras difusas que lhes apareciam pela frente. Fosse a fugir, fosse a defender-se, todos tombavam perante aquela maré de fúria homicida. Gritos apavorados de mulheres e crianças, misturavam-se com urros masculinos de dor ou raiva. Palavras desconhecidas misturavam-se com maldições, todas ecoando na alta abóbada da gruta.

Ferido num braço por uma lança e a sangrar da cabeça por uma pancada de uma clava, para Erem tudo não passava de uma névoa rosada, enquanto se desviava dos ataques e devolvia pancadas selvagens com o seu machado. O corpo e os ferimentos doíam-lhe e começavam a faltar-lhe as forças para manejar a arma.

Gradualmente, a gritaria converteu-se em murmúrios e gemidos, alguns calados violentamente ao som de pancadas surdas.

Sem inimigos à vista, Erem deixou-se sentar pesadamente, arrastando as costas pela parede áspera. O chão de pedra estava morno e viscoso. Passou a mão pela cara para limpar os olhos, mas ficou a ver ainda pior. Deixou cair a cabeça para a frente e fechou os olhos, esgotado.

— Pai? — A voz de Naci sobressaltou-o. — Estás bem?

Levantou o rosto e sentiu a água gelada que lhe despejavam na cara. Esfregou os olhos e estava novamente na penumbra avermelhada da caverna. O cheiro fétido a sangue e carne era indescritível e misturava-se com o fedor de cabelos e pele queimados. Por onde os seus olhos vagueavam só via corpos caídos de bruços ou dorsal, em posições pouco naturais… quase só mulheres e crianças. Havia mesmo bebés tombados sem vida ao lado das progenitoras…

Suspirou e escondeu o rosto entre as mãos. O estupor tomava conta dele ao mesmo tempo que se inteirava da enormidade do que haviam feito. Sentia as forças a faltar-lhe e era de muito longe que lhe chegavam as vozes dos companheiros.

— Vencemos! — Apregoavam uns.

— Acabamos com eles todos! — Gritavam outros.

— Viva Erem, que nos trouxe a uma grande vitória! — Soltou outra voz, logo ovacionada por todos.

O chefe ergueu-se ajudado por Naci e Fikri, que se haviam colocado um de cada lado e depois olhou os seus valorosos companheiros, onde não havia um rosto incólume. Abraçou o filho e deu umas palmadas afetuosas no ombro do filho de Lemi, enquanto sorria e acenava a cabeça tristemente para os outros.

— Vamos pegar os nossos mortos e feridos e vamos embora deste lugar maldito. — Soltou Erem num quase gemido.

Foi num silêncio quase total que revistaram o espaço pejado de cadáveres em busca dos companheiros perdidos, antes de se reunirem todos no exterior. O ataque “bem-sucedido”, saldara-se em seis mortos e quatro feridos com gravidade. Na realidade, ninguém escapara sem ferimentos e a distinção era apenas se precisava de ajuda para andar ou não. Da parte dos homens-macaco, a derrota fora total; quase trinta adultos e várias crianças. Não restara nenhum vivo, os atacantes certificaram-se disso enquanto procuravam os amigos.

Havia poucos deles em condições para arrastar um corpo morto durante as várias horas que lhes levaria o regresso à aldeia, além disso, precisavam de transportar a carne seca e os cereais que encontraram por isso e após animada discussão, resolveram deixá-los. Os cadáveres dos companheiros foram alinhados numa pira feita com a lenha que os inimigos haviam armazenado e incendiada. Os corpos dos homens-macaco ficaram onde caíram, os lobos e os abutres teriam o festim assegurado por vários dias.

 

9 - Velhos InimigosParte 9 – Velhos Inimigos

A seguir:         

Parte 11 – O Povo de Barinak

Na Madrugada dos TemposIntrodução – Na Madrugada dos tempos  

 

 

 

 

 

 

         

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sexta-feira, 28 de abril de 2023

Velhos Inimigos

 


Na Madrugada dos Tempos – Parte 9    

Certamente têm razão aqueles que definem a guerra como estado primitivo e natural. Enquanto o homem for um animal, viverá por meio de luta e à custa dos outros, temerá e odiará o próximo. A vida, portanto, é guerra.

Hermann Hesse

Escritor e pintor alemão

(1877-1962)

 

Todos estavam indignados com a audácia dos homens-macaco, principalmente os estrangeiros pelo assassinato dos dois homens. Aquele grupo, que se mantinha mais ou menos segregado da aldeia, já tinha quase tantos elementos como o próprio clã e, se inicialmente eram olhados com desconfiança, já circulavam livremente entre os demais, fazendo trocas e trabalhando onde era preciso.

Erem convocou um conselho para a semiconstruída casa da reunião, como todos lhe chamavam. As paredes não estavam totalmente erguidas, mas já representavam uma barreira eficaz contra o vento gelado. Os grandes troncos, previamente limpos das cascas, estavam enterrados profundamente à distância de dois homens e o espaço entre eles era diligentemente preenchido com camadas bem equilibradas de pedra. O objetivo era erguer aquelas paredes até ao limite dos troncos onde seriam “fechadas” com travessas de madeira, sobre as quais assentaria o telhado de colmo. Seria uma obra única nas redondezas.

Toda a população da aldeia já representava uma pequena multidão que Altan, o filho mais velho do chefe e Civam, um irmão de Zia tentavam silenciar. Foi, porém, a voz forte de Lemi que conseguiu impor respeito e gradualmente todos se calaram. Erem olhou com satisfação o amigo e tio, embora se sentindo preocupado pelo envelhecimento que este inverno estava a produzir nele.

O chefe subiu a uma pedra para poder olhar para todos e para ser visto. A seu lado esquerdo colocaram-se Zia e Civam e ao direito os seus filhos Altan, Tekin e Asil… uma vez mais Naci primava pela ausência.

— Amigos e vizinhos. — Começou ele à laia de apresentação. — Na noite passada sofremos uma grave afronta; mataram e feriram alguns dos nossos e roubaram e destruíram alimentos que nos irão fazer muita falta. — Um coro de vozes iradas e punhos erguidos ameaçadoramente apoiaram as palavras do chefe que fez um gesto a pedir silêncio. — Não nos bastam já as vezes que atacam os nossos grupos de caça, ou roubam as peças que perseguimos, como agora invadem as nossas próprias casas. — Novas vozes indignadas. — Por muito que me custe, tenho de vos pedir novamente para arriscar a vida pela nossa sobrevivência. Temos de voltar à gruta do nosso inimigo.

— Mas desta vez, temos de acabar o serviço de vez! — Gritou Naci da entrada do edifício. — A nossa covardia colocou-nos nesta situação; morreram alguns de nós no ataque, mas não devíamos ter desistido! Devíamos ter voltado, nem que fosse com todo o nosso clã, nem que morresse metade de nós, mas teríamos acabado com eles de uma vez por todas! — Havia alguns murmúrios de aprovação na audiência. — Em vez disso, andamos a arrastar pedras pelas montanhas e vales.

— O apoio dos deuses é o mais importante! — Gritou Zia, incapaz de se conter, sobrepondo-se ao coro de vários elementos da audiência que também se indignavam pelas palavras heréticas do filho do chefe. — Sem os deuses nada somos! Que podemos nós contra Tarhun[1], quando atroa os céus e destrói grandes árvores ou queima florestas inteiras? Que podemos nós contra Swol que tanto nos traz o suave calor quando a noite deixa de ser maior que o dia, como abrasa o ar e seca os chãos quando o dia é maior que a noite?

— Temos de eliminar a ameaça, sim. — Interveio Erem para conciliar as partes. — Temos de a eliminar de vez, mas agora invocaremos o apoio dos deuses antes de ir. Quero que todos quantos podem lutar se armem e se preparem para a viagem, ficam apenas os velhos, os doentes e as mulheres com crianças. Lemi organizará os grupos e escolherá alguns guerreiros que ficarão com ele a guardar a aldeia. Partiremos amanhã à primeira luz. Não pode ir ninguém ferido, nem doente, lembrem-se que está muito frio e as neves estão altas. Vai ser uma caminhada muito difícil. Quero aqui aproveitar — olhou na direção dos estrangeiros — para pedir a ajuda dos nossos vizinhos, para que nos cedam os guerreiros que puderem para combater esta ameaça.

Destacou-se entre o grupo um homem chamado Tailan, visto pela maioria como o porta-voz. Era dos mais velhos, o rosto alongado e enrugado de muitos sóis, o cabelo comprido preso num rabo de cavalo e a barba mantida curta. Envergava uma camisola de lã escura por baixo de um capote de peles de lobo.

— Apoiaremos de bom grado, grande chefe! — Respondeu ele na sua voz forte e de sotaque carregado. — Mas quero também pedir uma graça, a ti e a todos os que em Barinak[2] nos têm acolhido tão bem; gostaríamos de também poder enterrar os nossos mortos no santuário que estamos a ajudar a construir. Os mortos desta noite… — O homem calou-se à medida que vozes indignadas se faziam ouvir na audiência.

— Esperem! — Mandou Erem. — Acalmem-se, vá! — Insistiu o chefe sobre os descontentes. — Por que o não hão de merecer eles? Não trabalham lá como nós? Não colaboram em todas as atividades do clã como todos os outros? Mesmo nas construções na aldeia, que já não lhes diria respeito? — O descontentamento reduzia-se a alguns resmungos. — Bem sei que são estrangeiros, não são descendentes do grande clã de Birol, mas partilham connosco as dificuldades. Proponho que enterrem os seus mortos no santuário, sim, mas, tal como vivem nos limites da aldeia, os enterramentos serão em volta do círculo e não dentro. O círculo interior fica reservado aos elementos do nosso clã.

Tailan curvou a cabeça em agradecimento, ignorando alguns elementos da audiência que insistiam em manter a discriminação mais acentuada.

— Daqui vamos todos para o santuário — Zia tomou a palavra com autoridade, dando por encerrada a discussão —, sacrificaremos uma cabra e um cabrito. Farei a leitura das entranhas da velha para a aldeia e da nova para o nosso futuro. Invocaremos o favor dos deuses na nossa jornada e, com ajuda deles, desta vez venceremos.

Foi uma grande comunidade que se juntou no santuário onde havia agora cinco monólitos. As condições climatéricas limitavam muito o tempo de trabalho e a pedra com o tamanho necessário e as características exigidas por Zia ou Nehir encontrava-se cada vez mais distante. Por vezes faziam grandes caminhadas para ver um megálito referenciado por um dos caçadores, para chegar à conclusão que não era do material certo, não tinha tamanho ou estava quebrado. Agora optavam por duas equipas chefiadas por uma das mulheres que localizavam as pedras e deixavam lá aqueles que a iriam desbastar para a tornar mais leve e transportável. Só depois se iniciaria o transporte. Tudo tomava mais tempo; encontrar os objetos, a distância e os obstáculos naturais.

Erem, Zia e Nehir compareceram no santuário envergando as vestes e símbolos dos seus altos cargos. Ele trazia a cabeça e a pele de leão, que eram a majestade e o poder sobre os outros e a lança, que representava, ao mesmo tempo, a ferramenta que alimentava o clã e a arma que o defendia. Zia e Nehir envergavam alvos casacos de peles de carneiro que lhes desciam até aos joelhos com as golas e punhos de pele de coelho matizados de branco e cinzento. A mãe estava coroada com o cocar de penas de corvo e pomba cinzenta e a filha com outro de pomba branca, distinguindo os seus estatutos de sacerdotisa/oráculo e o acólito. 

Ainda havia murmúrios descontentes quando Zia executou as mortes rituais junto à fogueira no centro do círculo e invocou os deuses para que vissem o sacrifício que faziam. Aqueles animais eram preciosos e podiam, no espaço de poucas semanas, serem essenciais para evitar a morte pela fome de alguns deles, no entanto, faziam aquela oferenda para que as divindades percebessem que lhes davam mais importância do que à sua própria subsistência.

A noite descia rapidamente sobre o povoado e refletia-se apenas em pequenos espaços deixados entre as nuvens escuras que praticamente cobriam o céu. A luz bruxuleante das chamas projetava a sombra da sacerdotisa nas pedras: um gigante com enormes chifres que parecia querer libertar-se para avançar sobre os crentes. Também o som ressoava de forma impressionante nos monólitos, os que estavam mais perto, sentiam a vibração que deles provinha e as palavras do oráculo ressaltavam e pareciam ficar suspensas no ar. Zia invocava a presença de Swol que não os abandonasse e regressasse rápido com o calor, a caça e as colheitas, de Mensis para que lhes iluminasse a noite e os caçadores não se perdessem no caminho e de Tarhun para que os conduzisse à vitória sobre os inimigos. Enquanto isso, retirava as entranhas dos animais sacrificados para potes de barro que lhe eram estendidos por Nehir.

O chefe do clã colocou-se no meio das duas mulheres e aproximou-se da sacerdotisa para receber a premonição. Nehir marcou-lhe o peito com uma sanguinolenta mão aberta sobre o coração e Zia riscou-lhe o rosto com três dedos sangrentos em cada face antes de lhe segredar o que vira nas entranhas dos animais. Ele olhou-a com profundidade antes de confirmar com um aceno de cabeça que aceitava a previsão que podia ser divulgada ao povo.

Voltaram-se os três de costas para o altar sacrificial, de mãos dadas, os rostos negros e dourados pela luz da fogueira transformados em máscaras divinas, prestes a revelar a vontade dos deuses.

Swol, — gritou Zia, acima dos murmúrios que se silenciaram de imediato —, abraça os seus filhos e recomenda paciência para regressar em força e abundância. Mensis, diz; as noites serão calmas e, embora as nuvens de neve por vezes ensombrem os céus, ela estará lá para velar por nós. Tarhun dá-nos a sua bênção para levar a vingança aos nossos inimigos. A luta será difícil, mas o nosso clã prevalecerá!

Gritos de alegria e vitória ecoaram entre os crentes que se felicitavam mutuamente por tão auspicioso augúrio. Mas logo Zia tornou a erguer as mãos para impor o silêncio.

— Amanhã será um dia muito comprido e difícil. — Anunciou ela assim que todos se calaram, erguendo um dos potes de barro utilizados na cerimónia. — Aqui estão o sangue da cabra e do cabrito; o velho e o novo misturados e inseparáveis, como sempre deve ser.  — Com um ramo de oliveira aspergiu pingos carmins sobre os crentes. — Todos devem molhar as mãos nele e marcar as faces com três dedos, que dá a força de três homens e as roupas com a mão aberta que dá a coragem do nosso povo. Depois vamos descansar nos braços de Mensis e acordaremos ao som das cornetas de Tarhun.



[1] Deus do trovão, da caça e da guerra

[2] Santuário

8 - O Mundo Pula e Avança
Parte 8 – O Mundo Pula e Avança

10 - Olho por Olho
Parte 10 – Olho por Olho

Na Madrugada dos Tempos
Introdução – Na Madrugada dos Tempos

 

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sábado, 1 de abril de 2023

O Dia d’Os Hóspedes

Capa do livro “Os Meus Hóspedes”
de Fernando Ventura Morgado
 
Foi no passado dia 1 de abril, sim, é verdade, no dia das mentiras, que fui assistir à apresentação do livro "Os Meus Hóspedes" do meu grande amigo Fernando Ventura Morgado e mais uma produção das Produções Debaixo dos Céus.
A capa, com o design da produtora, usufruiu de uma das belas fotografias tiradas pela companheira e musa inspiradora do nosso escritor, a doce Fernanda Morgado.
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Fernanda Morgado
O evento aconteceu na bonita Vila de Alijó que, para quem não sabe, fica no extremo nordeste do distrito de Vila Real e grande parte do seu território está dentro da Região Demarcada do Douro,  além de ser berço do célebre Moscatel de Favaios, produzido  principalmente na freguesia que lhe empresta o nome.
 
O Homem do Douro

A estátua do Homem do Douro numa montagem extraída do Facebook do município

E que foi o meu amigo Morgado, um miragaiense, tripeiro dos quatro costados, fazer para o “Reino Maravilhoso”, distrito natal do grande e saudoso Miguel Torga? É fácil; como homem de paixões que é, apaixonou-se pela região e não mais parou sem conhecer melhor aquela terra e escrever sobre ela e as suas gentes. Fez lá vários amigos, claro, há alguém que consiga resistir ao sorriso, humildade e entusiasmo do Fernando Ventura Morgado? Como poderia ser de outra forma? Também os portuenses são homens do Douro, dos seus limites pois sim, daquele local onde o majestoso rio se liberta de paredes abruptas e dos montes rochosos e vai conhecer o mar. São portanto durienses também, os habitantes da Invicta, filhos e netos dos outros, daqueles que como o rio, um dia desaguaram para a última cidade antes do mar. Esse rio que lhes corre nas veias, como se sangue fosse, é um laço de irmandade que faz com que se reconheçam e se sintam irmãos.
Foi assim que o “duriense da foz” retornou às origens dos seus antepassados, “durienses transmontanos” para escrever mais um romance de amor, onde consta que um tal de Blamy e uma Joana se conheceram e se relacionaram tendo como pano de fundo a magnífica paisagem transmontana. Não foram sequer esquecidos os cheiros e os sabores das uvas e dos néctares que aqui se produzem. Para saberem mais do que isto terão de ler este excelente romance... talvez depois disso também desejem ir conhecer Casal de Loivos, onde parte da ação decorre.
Mas o que me traz aqui é a apresentação que aconteceu no passado dia um, onde o Fernando Morgado apresentou à sociedade a sua mais recente criação.
“Os Meus Hóspedes” tiveram o apoio da Câmara Municipal, representada nas pessoas da Vereadora da Cultura a Dra. Mafalda Mendes e a diretora da biblioteca, Dra. Otília Magalhães, que muito amavelmente cedeu as elegantes instalações da Biblioteca Municipal.
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Da esquerda para a direita:
Otília Magalhães, Fernando Morgado, Mafalda Mendes
 
Depois de uma pequena abordagem ao livro e à obra de Fernando Morgado por parte da revisora e amiga, Suzete Fraga, autora do livro “Almas Feridas” (Euedito/Sui Generis 2016), houve direito a uma impressionante leitura de um pequeno excerto do livro por Ana Cristina que, além de funcionária da biblioteca é Monitora de Expressão Dramática e dinamizadora da cultura popular.

 

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Suzete Fraga

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Ana Cristina
 
 
Foi também uma oportunidade para se juntarem, quase de surpresa, os fundadores do grupo de escritores Pentautores do qual o nosso Fernando Morgado é praticamente um membro honorário por direito próprio. Este grupo já produziu várias obras conjuntas de contos, como “Heranças”, “Histórias da Chuva e do Vento” ou “Deusas, Fadas e Bruxas”, entre outras.
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Os Pentautores

Clique nas imagens para saber mais sobre eles

Suzete Fraga

Suzete Fraga

Carlos Arinto

Carlos Arinto

Manuel Amaro Mendonça

Manuel Amaro Mendonça

JorgeSantos

Jorge Santos

Toda a sessão decorreu de forma mais ou menos espontânea e informal, enquanto o autor descreveu as suas “aventuras” em terras de Alijó e dos muitos amigos que fez, com especial referência ao senhor Albano Pereira, de Casal de Loivos, ex-autarca dessa freguesia e do Pinhão, a quem atribui grande mérito na produção deste romance e ao senhor Faustino e a esposa Leonilde, proprietários da Quinta do Jalloto, em Casal de Loivos, a quem teceu rasgados elogios de hospitalidade e simpatia.
Numa sala bem composta, a apresentação acabou por derivar nos problemas que afligem o mundo das letras, numa enorme revolução motivada pelos meios eletrónicos e nas novas gerações, no seu desinteresse pelos livros e pela escrita, completamente rendidos aos telemóveis, tablets e computadores.
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No fim houve livros e autógrafos para quem quis, além de um pequeno lanche fornecido pela Câmara Municipal, onde não podia faltar o incontornável Moscatel de Favaios.
 
Livros

 

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Foi um dia maravilhoso e enriquecedor que tenho a certeza agradou a todos quantos nele participaram e, com toda a propriedade, encheu o Fernando Morgado de orgulho.
Um dia a reter na memória e a inscrever na carreira deste “jovem” escritor.

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Veja o vídeo de apresentação no Youtube:

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Fotos: 

  • Fernanda Morgado
  • Jorge Santos
  • Manuel Amaro Mendonça

Imagens várias retiradas do sítio do Município de Alijó

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quarta-feira, 29 de março de 2023

O Mundo Pula e Avança

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 8

Eles não sabem nem sonham

Que o sonho comanda a vida

E que sempre que o homem sonha

O mundo pula e avança

 

António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)

Professor e poeta português

(1906-1997)

 

Apesar do choque inicial, a maioria das pessoas achou que as cabeças dos homens-macaco seriam uma boa oferenda aos deuses e não foram por isso removidas dos postes onde foram empaladas.

O inverno avançava em passos largos e os grupos de caça já regressavam com presas cada vez mais pequenas ou mesmo de mãos vazias. A neve caía, por vezes durante dias sem interrupção e havia um manto branco mais ou menos permanente a cobrir toda a paisagem.

Os cereais começavam a reduzir drasticamente e as frutas armazenadas comeram-se ou tiveram de se deitar fora por se estragarem. Temendo a fome no clã, Erem mandou convocar aqueles cuja opinião tinha em maior conta, embora o acesso fosse livre e frequentado pela maior parte dos aldeões. Em volta de uma enorme fogueira que derretera toda a neve e gelo em volta, os enregelados vizinhos foram-se acumulando, mantendo-se encostados para conservar ao máximo o calor corporal.

Na sua voz grave, Erem expôs o problema que todos tinham conhecimento; corriam o risco de não ter alimentos suficientes para sobreviver à época dos grandes frios e necessitavam de arranjar soluções.

Depois de várias vozes que se limitaram a apresentar queixas ou sublinhar as dificuldades já sentidas, pediu a palavra Alim, o mais velho dos nómadas, cujo grupo estava já completamente integrado na comunidade.

Ele começou por abordar o frio que todos sentiam nestas reuniões, que, aliás, deveriam repetir-se mais vezes sobre outros assuntos. Sugeriu que fosse construído um edifício maior onde coubessem de forma confortável os membros de um conselho que debateria o futuro do clã. Necessitariam de menos lenha para se aquecerem e os problemas das pessoas teriam um lugar onde serem apresentados para se obterem soluções.

Imediatamente se levantaram um conjunto de vozes discordantes que alegavam a incapacidade de se construir um espaço grande o suficiente, duvidavam da necessidade do mesmo ou até se queixavam do tempo que levaria a construir. No entanto, havia muitos rostos sorridentes que aprovavam a ideia.

Erem foi um dos que se interessou e pediu silêncio, fazendo sinal ao outro para continuar.

Alim explicou que era o que se fazia em muitas das localidades por onde passaram e que a construção de espaços maiores do que as pequenas casas redondas que erguiam não era muito complicada. O seu filho Beki ajudara por várias vezes nessas construções que juntavam madeira encaixadas e pedras, tudo unido por lamas endurecidas. Estava certo de que conseguiriam construir algo suficientemente digno recorrendo a esses conhecimentos. O tempo para o fazer; não há caça, nem agricultura, nem frutas, de certeza que se arranjará sempre uns pares de mãos para se avançar com a obra. A necessidade da mesma era outra questão: todos sentiram uma vez ou outra dificuldade ou um assunto que deveria ser trazido ao conhecimento da comunidade e que por vezes até nem o fazia porque chovia, ou estava muito frio, ou até muito calor.

Lemi, Erem e Zia conferenciaram entre eles em voz baixa enquanto Fikri ridicularizava a ideia, secundado por alguns outros. Naci, que chegara tarde e indolentemente, aproveitou o desdém do amigo para afirmar que quem decidia o que devia ou não ser apresentado ao clã era o seu chefe e não um estrangeiro qualquer.

Uma vez mais, Erem ergueu as mãos a pedir silêncio. Reafirmou que a ideia tinha interesse e iria ser discutida com ele mais em pormenor… via muitas possibilidades para essas “casas grandes” nomeadamente para um melhor armazenamento dos víveres do clã, em vez de estarem distribuídos por várias pequenas casas. O problema que os trouxe ali, no entanto, continuava sem sugestões de resolução, mas também nesse tema Alim alegava ter algo a sugerir e o chefe fez-lhe sinal para que continuasse, enquanto Lemi exigia silêncio às vozes discordantes.

A sugestão do homem ia no sentido de se iniciar uma atividade por demais conhecida por ele e o seu grupo: o comércio; tinham pouca comida, mas havia peles e ossos trabalhados, alguns tecidos, ou mesmo um, ou outro animal. Visitariam as aldeias em redor e fariam trocas por outros itens mais vantajosos e comida. Asil poderia dar algumas das estatuetas que esculpia, Enis os tecidos que produzia, até mesmo algumas das mezinhas de Nehir se podiam trocar.

Uma vez mais, Naci fez-se ouvir acima dos outros alegando que ninguém no seu juízo perfeito trocaria comida em pleno inverno, o outro, porém, tinha a resposta na ponta da língua; lembrou terem peles curtidas e arranjadas e que haveria quem trocasse animais vivos por elas, que consomem muito tempo e necessitam habilidade para ficar prontas.

Mas Alim tinha mais uma surpresa; aproveitando ter deixado o seu oponente sem resposta, informou ter um presente para o chefe da tribo, enquanto se aproximava e ofertava Erem com um objeto comprido, quase do seu tamanho, enrolado em pele.

Erem desenrolou rapidamente o objeto, revelando ser um elegante arco recurvado, totalmente diferente daqueles grosseiros que quase não utilizavam devido ao pouco alcance e força obtidos. Observou cuidadosamente a obra, perante os olhares admirados da assistência e apreciou como era composto por osso, madeira e couro endurecido, formando um elemento só mantido sob tensão por uma corda de tendão. O estrangeiro sorriu-lhe e explicou, enquanto lhe entregava uma seta, que levou muito tempo a fazer aquele trabalho, porque a cola utilizada precisava secar por muitos dias. Também a seta era habilmente trabalhada, resultando numa haste direita, lisa, com algumas penas na parte de trás e uma reluzente ponta de cobre.

A assistência abriu um caminho, sem que fosse preciso pedir, assim que o chefe em gestos lentos preparou-se para disparar a elegante arma.

Erem apreciou a tensão obtida no arco e esticou o máximo que pode, sempre pronto para ouvir o conhecido estalo que significava a destruição por esforço do utensílio. Não conseguiu, porém, que o objeto se partisse; estava já a ficar sem força para esticar muito mais quando soltou a corda e um velocíssimo projétil voou com um silvo pelo espaço aberto pela comunidade, desaparecendo de vista depois das últimas casas da aldeia. Algumas crianças saíram a correr a persegui-lo, apesar dos gritos de dissuasão das mães, para que não se afastassem, pois começava a escurecer.

Um clamor de espanto e admiração ecoou por toda a assistência, enquanto falavam entusiasticamente uns com os outros. Aquela era uma arma fantástica; poderiam caçar animais de distâncias maiores, antes que eles se apercebessem nem sequer da sua presença. Entre a alegria e excitação, ninguém se apercebeu do olhar rancoroso de Naci, que abandonou a reunião logo seguido por Fikri.

As novas ideias eram bem recebidas pelo chefe do clã e pela maior parte dos seus elementos, ajudava a isso a presença de estrangeiros das outras aldeias, que começava a ser frequente, fruto da admiração pela construção do santuário. Começavam a ser encarados com alguma naturalidade os grupos que vinham ajudar na construção por um ou dois dias, trazer oferendas ou simplesmente rezar aos deuses. Alguns fixavam-se em tendas nos arredores, com autorização do chefe, embora com o aviso de que teriam de respeitar as determinações do chefe, não teriam a palavra nas reuniões do clã, nem teriam acesso à distribuição de alimentos que era feita aos doentes, velhos e órfãos. Mas mesmo assim, isso representava uma ofensa para Naci e um reduzido rol de descontentes que desprezavam os estrangeiros e os seus conhecimentos.

As sugestões de comércio de Alim produziram o resultado necessário e poucos dias após partir com mais três homens e dois trenós carregados de bens, ele regressou com várias cabras, ovelhas e cereal. Ficou muito feliz ao deparar com a construção de um grande edifício a decorrer no extremo do casario. O progresso chegara a Barinak, que quer dizer santuário, o nome pelo qual começava a ser conhecida a aldeia nas redondezas.

O inverno estava no seu pico. A neve depositava-se sobre neve tornando as deslocações difíceis, alguns dos estrangeiros que visitavam o santuário, procuravam Asil pelas suas estatuetas em madeira que trocavam por objetos decorativos e até já havia encomendas para objetos de maior tamanho que seriam pagos com algumas cabras ou mesmo meio javali. Alguns queixavam-se de serem atacados e roubados no caminho para Barinak, outros diziam ter conhecimento da morte de um ou outro “peregrino”. Além de penosas, as viagens tornavam-se perigosas.

O Clã do Leão das Montanhas florescia em pleno inverno, quando a maioria apenas sobrevivia, mas os velhos inimigos não dormem. Uma noite, envolvido na escuridão, um estranho bando invadiu a aldeia e matou dois dos estrangeiros que residiam nos arredores, feriu com gravidade uma mulher do clã e roubaram toda a carne pendurada a secar. Entraram numa das casas onde estava armazenado cereal e levaram o que puderam, espalhando e espezinhando o restante pelo chão. Os homens-macaco haviam chegado.

 

 

 

            7 - A Obra Nasce

Parte 7 – A Obra Nasce

Parte 9 – Velhos Inimigos

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A Obra Nasce

Na Madrugada dos Tempos – Parte 7

 

Deus quer, o Homem sonha,

A obra nasce.

 

Fernando Pessoa

Escritor português

(1888-1935)

 

O pequeno grupo de nómadas estabeleceu-se na aldeia e gradualmente, o clima de desconfiança da maioria dos vizinhos desvaneceu-se. Claro que havia exceções, sendo as mais conhecidas Fikri e Naci, a que se juntava Cemil, um dos irmãos de Erem, que continuavam a desprezar os recém-chegados. Acreditavam que eles eram deserdados da sorte, sem casa e atacados por todos, porque não tinham o favor dos deuses e estes não iriam gostar que os acolhessem.

Naci estava principalmente sensível devido ao estado de saúde da sua mulher Su, que nunca recuperara completamente desde o ataque aos homens-macaco. Nehir lograra fechar o ferimento, mas ocasionalmente atacavam-lhe “uns calores” muitos fortes e caía desacordada com o corpo todo a ferver. Nessas alturas, a curandeira passava o dia inteiro a tentar baixar-lhe a temperatura com folhas de videira molhadas na testa e fazendo-a engolir pastas de alho e mel para combater os maus espíritos do corpo, mas após cada uma dessas crises, ela estava mais fraca que antes.

Ignorando as vozes discordantes, vários aldeãos emprestaram peles e ajudaram os nómadas a erguer quatro tendas nos limites da povoação. Como agradecimento, a noite fria em volta da fogueira foi abrilhantada por Beki e os irmãos que fizeram um pequeno espetáculo de malabarismo e dança. O ritmo era mantido pelo bater sobre peles esticadas em vimes entrançados num círculo. Todos ficaram extasiados pelas cabriolas acrobáticas dos jovens, pela percussão e pelas cantigas das mulheres. Gritos de alegria e assombro ecoaram na noite sob o límpido teto de veludo ponteado a prata antes de todos irem descansar.

Nos dias seguintes, Erem avisou Alim que se esperava deles a participação em todas as atividades da comunidade e, entre elas, a construção do santuário. Todos os que tivessem força para levantar um pote de barro cheio de água teriam de ser recrutados para as tarefas. Foi uma forma de os integrar e dar mais confiança.

Após consultar os astros e conferenciar com as outras mulheres, Zia anunciou a chegada da Noite das Sombras, que marcava o início da estação fria[1]. Nesta noite, dizia-se, os espíritos dos que já se foram podiam vaguear entre mundo das sombras e o dos vivos. Havia até quem afirmasse que, nas noites de nevoeiro, podiam-se distinguir as fogueiras do lado das sombras. Era uma noite de apreensão, pois representava o fim do período de maior abundância de caça e frutas. Os cereais estavam já moídos em farinha que se esperava que aguentasse muitos meses e as cabras e ovelhas mais velhas abatidas e a sua carne seca para consumir durante o inverno. As peles e os ossos resultantes da matança armazenaram-se para utilização futura.

Zia preparava a cerimónia que daria as boas-vindas ao inverno; a época dos dias frios em que o sol dava mostras de morrer e no coração de todos ficava o medo de que não voltasse. Em volta dos ídolos de Swol e Mensis já se erguiam quatro imponentes megálitos, dos vinte e quatro previstos. As pedras eretas foram coroadas com ramos de oliveira e colocaram-se coroas e folhas nos locais onde se previam erigir as restantes.

Desde o início da construção existiu grande polémica acerca do número de pedras a erguer no santuário e se no início pensaram apenas em dezasseis, cedo começaram as discussões se não deveriam, isso, sim, representar toda a aldeia e erguer uma pedra por cada um. Nem assim chegavam a acordo, pois, se nascesse alguma criança, teriam de erguer rapidamente outra pedra, ou retirar se morresse alguém. As discussões em redor da fogueira por vezes eram apaixonadas e se uns achavam serem precisas muitas para honrar os deuses, outros havia que não queriam arrastar mais do que as estritamente necessárias… ou mesmo nenhumas. Por fim, foi Lemi quem deu a solução para resolver o dilema; cada homem tem dez dedos nas mãos e a mulher, porque um homem não deve viver sozinho, tem outros tantos dedos. Não teriam uma pedra para cada homem e cada mulher, mas apenas duas vezes dez pedras, isso simbolizava todo o clã, o número de dedos com que produzem tudo o que necessitam para sobreviver! Após uns segundos a “digerir” a ideia, ergueu-se um clamor de aprovação de toda a audiência. Zia acalmou-os erguendo as mãos e pedindo a palavra: “Concordo com as vinte pedras.” — Informou ela erguendo a voz acima do burburinho. — “Mas acrescento quatro! Quatro pedras que definirão esse círculo de dez mais dez e defini-lo-ão da mesma forma que é marcado e definido o círculo da nossa vida. Como nascemos, crescemos, amadurecemos e morremos, também Swol assim é. Renasce ao fim de muitos dias moribundo e começa a ganhar força, a erguer-se no céu e a trazer a luz por mais tempo, trazendo o cio nos dentes e despertando a caça. Depois reina sobre o céu, inchando os dias com luz e calor, dourando as espigas e chamando as grandes manadas de auroques e bisontes. Mais tarde começa a perder a força, no período das colheitas, enquanto se aproxima do fim da terra, até ficar moribundo. Fica depois quase morto com a chegada dos grandes frios, quando as sombras ameaçam a luz e trazem a incerteza do seu renascimento… quatro pedras do ciclo da vida de Swol.”

Zia era a autoridade incontestável na marcação dos dias e todos confiavam cegamente nas suas indicações de quando era a época para deitar as sementes à terra, quando haveria mais abundância de caça ou quando seria a altura de o rio transbordar. Com os muitos conhecimentos passados de pais para filhos, ela possuía uma pele onde estavam meticulosamente atados um conjunto de ossos e paus enfileirados que era um dos seus guias. Por ali conseguia seguir as fases da lua e complementava as suas medições com a observação do tamanho das sombras projetadas por um pau espetado no chão para distinguir os solstícios e os equinócios. A mulher, munida daquele compêndio dos saberes dos antigos, era um calendário vivo.

Dos quatro grandes monólitos que começavam a demarcar o círculo, o último, erguido apenas no dia anterior e era o que representaria o início da estação dos grandes frios, a morte de Swol[2]. Estava perfeitamente alinhado com o sol do meio-dia e a sua sombra alongada tocava o ídolo correspondente ao astro-rei no centro do complexo.

Zia fazia-se acompanhar de uma Su débil e insegura, que ninguém conseguira demover de colaborar na preparação das cerimónias. A sogra obrigava-a a que estivesse sentada a entrançar as plantas para as coroas, enquanto as restantes mulheres iam recolhê-las entre as árvores da floresta. Apesar do frio que já dominava, aquele dia mostrava-se com um sol invulgarmente quente que fazia transpirar os laboriosos celebrantes.

Su, tendo terminada uma pequena coroa verde que adornou com alguns fios dourados de feno, ergueu-se e caminhou até ao local onde haviam enterrado Ediz. A terra remexida, na sombra de um dos megálitos, ainda estava húmida pela geada noturna e a rapariga baixou-se para pousar a singela homenagem no lugar onde estaria a cabeça do guerreiro. Quando se ergueu, sentiu que todo o mundo começara a correr à sua volta e as enormes pedras rodopiavam e cabriolavam ameaçando cair sobre ela. A cabeça parecia explodir com uma dor insuportável e soltou um grito lancinante antes de cair desacordada.

Quando Naci chegou com os grupos que arrastavam os grandes toros de lenha para a fogueira no santuário, já a sua jovem esposa havia partido deste mundo. Ele soltou gritos furiosos, com os olhos injetados de sangue, empurrou quem o tentou acalmar e nem mesmo a mãe conseguiu que sossegasse. Entrou como um ciclone na sua casa, fazendo fugir as mulheres que velavam e ajoelhou-se banhado em lágrimas ao lado do corpo débil e sem vida da companheira. Saiu depois a correr cegamente na direção da floresta gritando imprecações contra os deuses.

 Ficava assombrada com tal perda a celebração do primeiro dia de inverno. Alguns diziam que uma morte no recinto do santuário não era um bom presságio, mas logo outros contrapunham que ela morrera na sua casa e não ali e, mesmo que assim não fosse, não era aquele também um monumento aos mortos? Embora com muito menos ânimo, resolveram continuar com os preparativos.

Erem, que começava a ficar preocupado com Naci, mandou dois homens procurá-lo, mas eles voltaram passado algum tempo sem o encontrarem. Acrescentaram que ele era um caçador experiente e conhecia bem as florestas e, se não quisesse ser encontrado não seria. Com a noite a cair, Zia estava preocupada porque o cadáver de Su não devia ficar insepulto depois do por-do-sol. Se isso acontecesse, ela não conseguiria encontrar o caminho para as grandes pastagens nos braços da Da Matter[3]e ficaria eternamente a vaguear sobre a terra como um Ansu[4] perdido.

A sacerdotisa tomou a iniciativa e mandou que fossem buscar a infeliz para o santuário; ficaria ali sepultada, no local onde tanto se esforçara para estar. Os filhos Zilo e Nali, o rapaz com quatro e a rapariga com dois anos, assistiram tristemente ao sepultamento abraçados pelas tias. A avó cantou as orações rituais presididas pelo olhar atento do avô, após o que todos caminharam sobre a sepultura acabada de tapar.

Os últimos laivos de luz desapareceram no horizonte e a noite aparecia fria, com um ar fino e gélido e a Lua Nova impercetível no céu. Um murmúrio de espanto e receio percorreu os aldeãos assim que se aperceberam de dois pequenos grupos com seis ou sete homens e mulheres cada, composto apenas por estrangeiros que se aproximaram timidamente do santuário. Lemi, encabeçando uma improvisada segurança com vários elementos do clã, questionou as intenções dos recém-chegados que exibiram algumas oferendas compostas por coroas de flores secas, peles e mesmo cabritos. Eram oriundos de duas aldeias próximas e pretendiam assistir à cerimónia, algo a que Erem assentiu com um gesto magnânimo.

A audiência amontoou-se vocalizando um som profundo e gutural, em volta do círculo definido pelas pedras já erguidas e os locais das próximas. Archotes compridos, feitos de vimes secos e gordura animal, crepitavam e pingavam no chão onde estavam espetados, deixando a audiência numa penumbra irreal. Iluminada pela luz bruxuleante da grande fogueira, Zia orou ao Sol para que voltasse e não abandonasse os seus filhos, enquanto a noite se enchia de pequenos pontos brilhantes e a Via-Láctea impressionava como um imenso rasgão no céu. A percussão nas peles esticadas sobre as coroas de vimes fazia tremer o peito e aumentava o temor e o sentimento de reverência pelos deuses.

Com maestria, a sacerdotisa espetou a faca de sílex no pescoço de uma pequena cabra e sangrou-a para um recipiente de barro. Em seguida aspergiu as chamas e a assistência com o sangue obtido gritando para os céus que aquela era uma oferta dos filhos de Sol que pediam para que regressasse rápido e trouxesse o ventre cheio de caça e espigas douradas. Dois dos rapazes mais jovens aproximaram-se dela sendo marcados em ambas as faces com três dedos ensanguentados, após o que voltaram o cadáver da cabrita de patas para cima expondo o ventre para Zia. A mulher do chefe fez um corte profundo expondo as entranhas do animal, sem as cortar. Extraiu os intestinos e todos os órgãos da carcaça, distribuindo-os cuidadosamente por vários recipientes, deitando especial atenção ao coração e ao fígado, que cortou em vários pedaços, chegando mesmo a comer alguns. Ergueu-se depois, com os braços abertos ao céu, as mãos escorrendo sangue e gritou: — Swol voltará! Vem aí muito frio, chuva e neve, onde Ele parecerá moribundo e ausente, mas não esquecerá os seus filhos e regressará para nós! Swol! — Gritou por três vezes, recebendo o eco de felicidade de toda a audiência.

Com o sangue recolhido, a sacerdotisa marcou cada um dos monólitos com uma mão carmim de dedos bem abertos.

Durante toda a cerimónia, o chefe do clã não tirava os olhos da orla da floresta, sempre esperando ver regressar Naci.

Quando todos se recolhiam, Zia queria organizar buscas pelo filho, mas foi Erem quem a desencorajou. Na busca por Naci, no meio da floresta e na escuridão, arriscavam-se a perder mais alguém.

— Por muito que me custe — o chefe sentenciou com as lágrimas nos olhos —, ele é um homem feito e um dos nossos melhores caçadores e pisteiros. Sabe para onde foi e saberá encontrar o caminho de volta… se quiser voltar.

A noite para ambos foi insone; de olhos abertos e em silêncio, sempre a esperar ouvir os cães a assinalar a chegada de alguém. Acabaram por adormecer completamente esgotados para serem chamados às primeiras horas do dia. Naci havia chegado e estava no santuário.

Correram para lá; o filho de ambos, com o rosto marcado por vários pequenos cortes e equimoses, estava embrulhado numa grossa pele de urso e sentado ao lado da sepultura da mulher. Na entrada do santuário, havia duas estacas exibindo as cabeças decepadas de dois homens-macaco.



[1] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro

[2] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro

[3] Deusa mãe

[4] Espírito

 

 

 

 

6 - Os Outros Homens

Parte 6 – Os Outros Homens

8 - O Mundo Pula e Avança

Parte 8 – O Mundo Pula e Avança      

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

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