terça-feira, 29 de agosto de 2023

O Cativo

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 13

O número dos nossos inimigos varia na proporção do crescimento da nossa importância. Acontece o mesmo com o número dos amigos.

Paul Valéry

Filósofo, escritor e poeta francês

(1871-1945)

 

 

Indecisos sobre o que fazer com o ladrão, amarraram-no a uma estaca no centro do povoado, mesmo em frente à casa de Erem. Na fúria vingativa, os aldeãos despojaram-no das roupas, encheram-no de pancadas e atiraram-lhe toda a espécie de objetos inomináveis. As tentativas para extrair algo de inteligível dele, porém, foram infrutíferas. Não conseguiam perceber a algaraviada do invasor, apesar de, por vezes, uma ou outra palavra parecer familiar. Chamaram vários dos estrangeiros residentes, mas nenhum conseguiu entabular uma comunicação. Por gestos, conseguiram perceber que ele provinha de algum lugar distante para lá das montanhas a norte e que eram um clã numeroso.

O pequeno e improvisado, “conselho” com Erem, Lemi e os recém-admitidos, Alim e Tailan, discutiu o pouco que sabia. Se por um lado sentiam-se mais descansados por saber que os ladrões estavam longe, por outro, o facto de chegarem até ali, significava que se movimentavam… talvez na direção da aldeia. Além disso, possuíam armas de cobre; facas, espadas curtas, as pontas das flechas e até os próprios arcos estavam decorados com finas folhas trabalhadas do metal. Estavam obviamente perante um povo bem armado e com conhecimentos para além dos deles.

Distribuíram as armas pelos melhores guerreiros, mas Erem, satisfeito com o punhal que lhe fora oferecido há algum tempo por Alim, abdicou da espada que lhe caberia e permitiu que fosse entregue a outro.

Como havia trabalhos a desempenhar, gradualmente, o grupo que circundava o cativo foi ficando menor, reduzindo-se apenas às crianças que começaram a divertir-se atirando-lhe pedras. O homem gritava na sua língua incompreensível e rosnava-lhes sem sucesso, para alegria dos petizes. Foi Zia quem interveio fazendo-os dispersar. Antes dela própria se ir embora, ainda deitou um olhar preocupado ao prisioneiro; que haveriam de fazer com ele? Deveriam simplesmente matá-lo como muitos sugeriam? Oferecê-lo a Swol no círculo de pedra? Seria ser uma honra para os deuses ou iriam conspurcar o lugar sagrado?

Já não chovia há uns dias e as planícies estavam forradas de erva tenra que veados e auroques pastavam livremente. Havia muito trabalho a caçar e a desmanchar as carcaças para secar as carnes. Além disso, também beneficiando dos dias que cresciam, a operação de construção do santuário recomeçou e as equipas para arrastar as pedras já saíam todos os dias para a sua atividade.

Ao anoitecer, todos regressavam e a fogueira no centro da aldeia já ardia, acendida pelas mulheres. Apesar da casa da reunião já ter sido terminada, desde que não nevasse ou chovesse, muitos preferiam continuar ali ao ar livre, em vez de fechados atrás de paredes.

Há medida que a luz desaparecia e o número de pessoas em volta da fogueira crescia, também os murmúrios acerca do prisioneiro se faziam ouvir. À semelhança das crianças, também os adultos atiravam pedras, ossos, ou mesmo brasas ao cativo.

A chegada de Erem e Zia impôs algum respeito e os grupos familiares retomaram as suas atividades normais colocando pedaços de carne sobre as brasas que depois dividiam entre si. Alguns bebiam uma pasta de água e cereais mal triturados, acompanhados de carne seca. Tudo era melhor quando havia fruta, mas, para já, tinham de se contentar com algumas bagas ou amêndoas e nozes bolorentas.

Faltava apenas um dos grupos de caça… especificamente o de Naci e Fikri, que era o que normalmente se arriscava mais a afastar-se mais da aldeia, mas também era frequentemente o mais bem-sucedido.

Em volta da fogueira, as famílias faziam a refeição e falavam entre si ou em conversas cruzadas com os grupos vizinhos. Erem e Lemi, em grupos separados, debatiam o que deveriam fazer com o prisioneiro. Este último era de opinião que tinham de o matar; era culpado de roubo e quase de certeza matara ou colaborara nas mortes do último assalto. Ou entregavam-no aos familiares das vítimas para se vingarem, como muitos exigiam, ou sacrificavam-no aos deuses.

Nehir, normalmente silenciosa nestes debates, interveio: “Swol e Mensis acasalaram e velam pelos homens desde Manu[1]. Trazem a noite e o dia, as plantas e os animais que comemos, tudo isso para que os seus filhos não precisem de se matar e comer ou serem comidos. Matar outros homens é mau. Os deuses não gostam.”

Zia assentiu para os outros gravemente e depois sorriu e acariciou carinhosamente o braço da filha.

Apesar da conversa importante, Erem estava distraído, atento a todos os movimentos para além da fogueira, sempre na esperança de ver chegar Naci e o seu grupo de caça. Ele era o seu eterno rival, que contestava a maioria das suas decisões, mas era também o alvo da sua admiração, amor e desvelo. Amava os outros filhos, claro; Nehir, a curandeira, sempre serena, atenta e mística, Asil, que escavava as pedras e bocados de madeira transformando-os em objetos de culto, Altan e Tekin, os mais velhos e mais sensatos. A angústia instalou-se-lhe no peito ao lembrar Nuri, morto pelos homens-macaco. Ninguém poderia duvidar do seu amor por todos os filhos e orgulho em todas as suas conquistas, mesmo as de Asil, que alguns homens desprezavam como sendo fraco e pouco dado a lutas; as suas esculturas de madeira levavam longe o nome de Barinak e as pedras do seu amado santuário ficavam maravilhosas após terem sido escavadas por ele… só era pena que demorasse tanto tempo. Às vezes ia espreitá-lo nas suas visitas ao santuário, a bater diligentemente com um pedaço de basalto num dos enormes monólitos até conseguir extrair da sua superfície o focinho de um leão, um cervo, ou mesmo um gafanhoto. Mas era Naci a sua eterna fonte de preocupações; arrojado, atirava-se de peito aberto a qualquer luta e saía quase sempre vencedor. Os deuses sorriam-lhe desde o nascimento, que acontecera numa noite escura, de grandes relâmpagos e trovões que abafavam os gritos de Zia. Durante o seu crescimento revelou-se um líder nato; os outros jovens seguiam-no cegamente deslumbrados com a sua coragem e ímpeto… mas Erem temia faltar-lhe ainda muita sensatez. Era demasiado jovem e as suas ações punham muitas vezes todos em risco, além dele próprio. Lemi dizia que Birol, o avô, também fora assim, mas foi gradualmente ganhando calma e discernimento.

Erem queria a opinião do filho, embora soubesse que na maior parte das vezes realizaria precisamente o oposto, deixando-o furioso. Servia-se dele como um dos pratos de uma balança onde tentava equilibrar a impetuosidade dele e a sua própria sensatez. Ao mesmo tempo, mostrava ao filho que, na maior parte das vezes, agir sem refletir seria um erro. Naci, porém, achava que o pai ficava velho e fraco e já tardava a hora em que um dos irmãos, ou mesmo ele, deveria tomar o seu lugar.

O chefe estava envolvido nesses pensamentos, com o olhar fixo no miserável prisioneiro amarrado ao poste, rodeado por imundícies e pedaços de comida que adultos e crianças lhe atiraram. Estava completamente nu e a sua pele clara marcada pelas equimoses das pancadas que levara. Só não estava já morto pelo respeito que Erem exigira. Como um animal selvagem encurralado, mantinha-se curvado e os olhos vivos circulavam pelos seus captores, sempre pronto a esquivar-se ao que lhe arremessavam. “Tenho de lhe deixar umas peles para dormir” — Refletiu de si para si. — “Não quero que morra gelado. Precisamos de saber o máximo que pudermos dele e do seu clã. Só então se decidirá o que fazer com ele.”

Murmúrios alterados e pequenos gritos de algumas mulheres fizeram-no olhar para além das casas mais próximas, a distância limitada pela escuridão. Ali pareciam materializar-se dois guerreiros magros, vestidos com túnicas compridas. Traziam o cabelo em finas tranças decoradas com pequenas esferas, empunhavam lanças bem direitas, mais altas um palmo do que eles. Vários membros do clã levantaram-se alarmados e preparavam-se para enfrentar a ameaça, quando, pelo meio dos recém-chegados, passou a trote um dos lobos que Cemil, o irmão de Erem criou desde filhote. O predador domesticado atravessou calmamente o centro do aldeamento, rosnando aos que estavam demasiado próximos, em direção ao amontoado de troncos onde dormia. Atrás dos estranhos, que se mantiveram imóveis, começavam a sair da escuridão os esperados membros do grupo de caça, seguidos por Fikri e Cemil. Dois homens arrastando uma padiola fechavam o cortejo.



[1] O Primeiro Homem

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12 – As Aparências Iludem

 

 

A seguir:

 

Decisão Dificíl

Na Madrugada dos Tempos
Introdução – Na Madrugada dos Tempos

 

 

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sábado, 29 de julho de 2023

As Aparências Iludem

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 12

 

As pessoas nunca são o que parecem. Nunca.

Nem mesmo quando parecem ser o que são.

A aparência nunca é a essência.

José Luís Nunes Martins

Filósofo e escritor português

 

O céu estava cor de chumbo e o vento uivava como milhares de longínquos lobos. O ar, prenhe de pó e areia, cegava e ardia nos olhos.

No meio da planície árida, com alguns troncos esquálidos aqui e ali à laia de árvores, os dois leões, um mais jovem que outro, rosnavam-se mutuamente como que discutindo opiniões contrárias.

Repentinamente, saída do nada, uma descomunal matilha de hienas de dentaduras proeminentes e aguçadas pingando baba soltava tétricas gargalhadas nervosas enquanto rodeava ameaçadoramente a dupla. Atiravam dentadas no ar, estalando os dentes, enquanto quase se afogavam em saliva, fazendo os ameaçados rodarem sobre si próprios, nunca perdendo as sanguinárias criaturas de vista.

Por fim, como que respondendo a um sinal, as hienas lançaram-se sobre os dois leões, que se defenderam com garras e coragem típicas da sua espécie.

O combate durou poucos minutos, mas várias das atacantes jaziam em agonia com ossos partidos ou pavorosas lacerações de onde lhe jorrava a vida. As restantes fugiram rapidamente, dentes escorrendo baba e sangue, soltando gritos e gargalhadas que mais pareciam choros apavorados.

O mais jovem dos leões partiu à desfilada atrás dos traiçoeiros atacantes, desprezando os seus próprios ferimentos. O leão mais velho deitou-se pesadamente, cansado, lambendo as dezenas de feridas a que conseguia chegar com a língua. No seu dorso, porém, alguns dos profundos rasgões feitos pelas dentadas haviam conseguido penetrar o grosso couro e expor a carne rubra e sanguinolenta.

Ainda mal o leão jovem desaparecera na distância quando parte do grupo das hienas regressou, muitas exibindo as feridas da luta anterior, mas com a mesma determinação. Sem dar tempo a resposta, lançaram-se sobre o velho leão num frenesim de dentadas e gritos e gargalhadas até se cansarem, saciadas e afastarem-se de uma massa ensanguentada e disforme de ossos.

Uma das criaturas mais afastada do grupo focou-se de repente nela, observadora de toda a tragédia. Os seus olhos pequenos e redondos constatavam a sua presença, os dentes pingando sangue arreganharam-se e, com uma gargalhada, atacou!

Zia acordou com um grito sufocado. Estava completamente despida, encharcada em suor, deitada ao longo de um pequeno tubo onde mal cabia.

Respirou sofregamente tentando acalmar o bater violento e descompassado do coração, ainda apavorado pelo terrível pesadelo que a atormentara.

Lentamente acalmou-se e conseguiu respirar em profundidade, enchendo bem de ar a parte inferior do diafragma e soltando lentamente até o próprio coração ficar com as batidas normalizadas.

“Tenho de deixar de fazer isto.” — Reconheceu, enquanto soltava as pedras que tapavam a cabeceira do estranho compartimento. — “Tenho de começar a ensinar uma das crianças…”

Assim que ela removeu as primeiras pedras, rapidamente surgiram outras mãos a ajudá-la e a afastar as obstruções e a limpar o chão por onde arrastaram a sacerdotisa, colocando-a em pé. Esta, nua, coberta de transpiração e pó, rodeada por mulheres, foi tapada com peles e o seu cabelo sacudido do pó.

“… que pena Nehir não se interessar pela adivinhação e pelas forças do mal que tentavam contrariar os desígnios dos deuses… — Zia continuava os seus pensamentos, alheada dos cuidados para com a sua pessoa — … continuava a ser ela, já velha, a ter de beber o sumo da flor-de-fogo, para através dos sonhos perceber o que as divindades tinham para lhes dizer.

Os joelhos fraquejaram-lhe e as companheiras agarraram-na enquanto lhe punham um cepo de madeira no chão para que se sentasse.

Erem irrompeu sem dificuldades pelo círculo protetor formado pelas mulheres e ajoelhou junto da sua companheira.

— Então? — Interrogou de chofre. — Que viste?

— Não sei bem. — Suspirou ela, a cabeça pesada e os olhos semicerrados. — Preciso descansar, depois penso melhor sobre o assunto.

— Mas que viste? — O chefe insistiu.

— Não sei! — Reafirmou atordoada pelo cansaço. — Leões e hienas… à luta…

— E que mais?

— Não sei! Preciso descansar! — Ela arregalou-lhe os olhos e levantou a voz. — Não consigo pensar, está tudo baralhado na minha cabeça. — Depois acalmou-se e olhou suplicante para as companheiras. — Levem-me para a minha casa.

Zia dormiu durante quase o resto do dia. Não acordou para comer, se não já ao anoitecer e apenas para beber água e roer um pouco de carne seca, pensativamente. A sua visão perturbava-a e temia compreender o seu sentido; o velho leão seria deixado sozinho e despedaçado pelos inimigos… expedições como o ataque aos homens-macaco, que deixaram a aldeia desprotegida, poderiam ser o fim de tudo. Mas seria um aviso, ou um vislumbre do futuro? Com o inverno a prolongar-se e a falta de alimentos a fazer-se sentir, os grupos de caça eram maiores, percorriam mais distância e ausentavam-se mais tempo, também aí poderia haver perigo.

Erem respeitou o silêncio dela embora não deixasse de a observar, preocupado. Anoitecia quando regressou a casa. O frio lá fora fez com que todos regressassem cedo; a caça rendera um pouco melhor que o dia anterior, os grupos combinados com os estrangeiros tinham bons resultados, mas tudo deveria ser racionado e havia quem não quisesse partilhar. Vinha carrancudo e meditabundo quando entrou e deparou com a mulher sentada nas peles junto à fogueira a comer. Era bom sinal. Sentou-se ao pé dela em silêncio, sentindo o cheiro a fumo e a transpiração que enchiam a divisão. Pelo buraco do teto de onde saía o fumo conseguia ver a ominosa estrela brilhante que arrastava uma cabeleira de luz atrás de si.

Por fim ela resolveu falar e contou-lhe pormenorizadamente a sua visão, transmitiu-lhe os seus receios e comunicou-lhe a decisão de passar a trazer consigo uma ou duas crianças. A conversa prolongou-se durante horas até a lenha estar transformada em apenas brasas. A tudo o chefe acedeu e sugeriu as netas Cansu e Atye, respetivamente as filhas mais novas de Altan e Tekin, que eram suficientemente pequenas para começar a aprender. Zia, porém, disse precisar de alguém mais velho que tomasse contacto com ensinamentos mais complexos… se acontecesse algo antes das crianças estarem preparadas ficariam sem alguém para implorar aos deuses. Achava que Kiraz, viúva de Oran, um dos filhos de Lemi, parecia ter o necessário.

Erem ficou contente por tudo continuar na família e concordou que teriam de manter mais guardas na aldeia, até porque os homens que enviara aos povoados em redor relatavam também ataques e roubos de maior ou pequena monta. Os homens-macaco não eram, afinal, os únicos ladrões da região.

Quando finalmente se deitaram e abraçaram-se debaixo das peles ao lado do lume reavivado, Zia adormeceu imediatamente, mas Eren não conseguiu. O significado da visão não era ainda claro. Quereria dizer que o clã estava condenado? Aconteceriam divisões entre eles e os que restavam seriam exterminados? Se o leão representava o clã, quem eram as hienas? Inimigos internos ou externos? Será que o facto de permitir que os estrangeiros vivam entre eles era a semente para a destruição do clã? O tempo que deveria passar a dormir desvaneceu-se nestas cogitações até que o cansaço o venceu.

Ainda o sol não nascera quando foram acordados por gritos agitados de homens e mulheres.

Acorreram à agitação que acontecia perto da casa armazém. A multidão que se juntava abriu alas para o seu chefe que deparou com dois homens caídos. Um, estava morto quase de certeza, a avaliar pela quantidade de sangue que jazia empastado ao lado da cabeça, mas o outro, apesar dos vários ferimentos nas mãos e no rosto, mexia-se bem; deitado de costas, as mãos erguidas numa prece, chorava e implorava num idioma estranho.

Alguns dos guardas do armazém, excitados, explicaram de forma ofegante e nervosa o acontecido; cerca de cinco estranhos atacaram o homem que guardava a entrada tendo sido surpreendidos pelos dois que os aguardavam na parte de dentro. Com os gritos de alarme e o acorrer de mais guardas, os atacantes lograram fugir, com a exceção daqueles dois. Eram estranhos à aldeia e não falavam a língua de nenhum dos povoados em redor.

Erem fitou o homem vivo com intensidade que, pressentindo a autoridade nele, arrojou-se a seus pés, arengando num choro histérico. Os pensamentos do chefe, porém, não estavam no estranho em si, mas no que representava a presença de povos de outras regiões numa área que começava a estar sobrepovoada. As novidades não se ficavam, contudo, por ali. Um dos netos de Lemi, gritava para quem o quisesse ouvir que o invasor morto trazia ao pescoço o colar que oferecera à sua prometida, que fora assassinada durante o último ataque dos homens-macaco a Barinak… tudo indicava que afinal os atacantes foram outros. A terrível constatação pesava fortemente sobre o coração de Erem; destruíram e mataram um clã inteiro baseados numa suspeita que agora se revelava falsa.

11 - O Povo de Barinak

Parte 11 - O Povo de Barinak

13 - O Cativo

Parte 13 – O Cativo

       
Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

 
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quinta-feira, 29 de junho de 2023

O Povo de Barinak

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 11

Ninguém reprovará o seu irmão por ele ser o que é; mas com paciência e persistência,

com inteligência e com amor, procurará levá-lo ao nível mais alto.

Agostinho Silva

    Filósofo, poeta, ensaísta, professor e filólogo português

    (1906-1994)

 

Apesar de vitoriosos, o entusiasmo com que foram recebidos esmoreceu rapidamente assim que viúvas e órfãos aperceberam-se de que os corpos dos seus entes queridos nunca regressariam, reduzidos a cinzas algures nas montanhas inóspitas. Se a maioria os felicitava pela vitória total e maravilhava-se com os colares e artefactos vários saqueados no ataque, as famílias dos falecidos resmungavam revoltadas pelo ultraje.

Erem tentou acalmá-los o melhor que soube e explicou virem todos esgotados e feridos, sem forças para arrastar os mortos. Foi Zia quem acabou por vir no seu auxílio, prometendo que fariam uma cerimónia especial pelos caídos e enterrariam no santuário os seus objetos pessoais em sua honra. Seria um agradecimento a Tharun por tão retumbante vitória, a Swol por permitir que sobrevivam aos inimigos e aos que fizeram o sacrifício último pelos seus vizinhos.

A promessa agradou à maioria e pareceu transmitir algum contentamento a parte dos ofendidos, mas havia uma coisa de que ninguém falava, como se não tivessem reparado, mas que era uma grande questão que começava a incomodar; onde estava o resto dos alimentos roubados?

Fora grande a quantidade de víveres furtada dos armazéns, era de esperar poderem recuperar uma boa parte deles na gruta dos infames homens-macaco, mas a verdade era que não encontraram peças de carne seca nem cereais dignos de nota. Não era possível que tivessem comido tudo no espaço de tempo entre o roubo e o ataque, apesar de serem muitos. Lemi sugeriu que teriam provavelmente escondido noutro local, mas Alim aventou que seriam poucos para transportar a totalidade do haviam roubado e que a maioria poderia estar enterrada algures a meio caminho para ser resgatada mais tarde… se assim era, o segredo estava morto como os seus donos. Fosse qual fosse a razão, o clã estava despojado dos seus recursos para o inverno e a sua sobrevivência estava ameaçada.

A neve já não caía com a intensidade de há uns meses, tinha períodos mais ou menos longos, mas já não durava sequer um dia inteiro. A chuva que normalmente a seguia lavava a pouca que se agarrava nos locais expostos à luz do sol tímido que se filtrava pelas nuvens, restando apenas aquela em sítios sombrios ou mais húmidos, já transformada em gelo. Era este alívio das condições atmosféricas que permitia que os grupos de caça estendessem a sua ação, mesmo assim com pouco sucesso. O comércio com as outras povoações já não era tão frutífero; também elas racionavam os alimentos. Só o degelo dos rios permitia alguma pesca. Mais alguns migrantes engrossaram o número de tendas fora dos limites da aldeia, mas estes, ao contrário dos anteriores, eram miseráveis empurrados pela necessidade. Foram obrigados a ter grupos de dois homens a guardar a armazenagem dos víveres noite e dia, devido a pequenos roubos que aconteciam. O espectro da fome pairava sobre a aldeia e a primavera ainda estava longe. Medidas como a que Erem instituíra anos atrás, de entregar uma parte das caçadas para as viúvas e órfãos que não tinham meios de obter o seu alimento, começavam a ser contestadas. Para agravar tudo, nas noites menos nubladas, conseguia ver-se uma estrela gigante que parecia arrastar as outras atrás de si.

Depois de algumas queixas, Erem mandou chamar Alim e recebeu-o na recém-terminada Casa da Reunião, usando a pele cerimonial com a cabeça de leão, sentado num banco feito com troncos cortados grosseiramente, mas cobertos com alvas peles. À sua esquerda, em pé, estavam Zia e Lemi e à direita, com a lança e o machado de caça, Naci e Fikri.

Alim, que se fazia acompanhar do seu filho Beki, surpreendeu-se com a presença de Tailan e outro homem que mal conhecia e que aguardavam em pé à entrada. Sentiu a frieza e a majestade da receção, muito diferente da informalidade habitual entre eles. Não havia nada para se sentarem e a fogueira que costumava aquecer o espaço era apenas uma braseira que deformava o ar em ondas de calor. Como que combinados, os quatro homens avançaram para lá da fogueira, ficando a uns poucos metros de distância do chefe e da sua comitiva.

— Chamaste-me, Erem? — Interrogou o homem mais velho, que não era pessoa de andar à volta dos problemas nem de evitar conflitos. Entretanto, deitou um olhar interrogativo aos outros dois que, com ele, pareciam estar a ser julgados.

— Sim, meu amigo. — Começou o chefe sem se levantar. — Tenho assuntos desagradáveis para falar contigo e com Tailan, como representantes dos estrangeiros que aqui vivem.

— Espanta-me que me chames amigo e logo a seguir digas que sou um estrangeiro. — O rosto de Alim pareceu ficar cinzento, enquanto o de Erem corou. — Eu e a minha família fomos os primeiros a juntar-nos a esta aldeia e damos um grande contributo para o bem de todos.

— Também eu e todos os outros, estrangeiros como nos chamas, contribuímos com o nosso esforço em tudo o que se construiu e a partilha da caça e da pesca! — Tailan também estava corado, mas de indignação. — Não entendo esta… receção, nesta casa onde tantos “dos meus” trabalharam ao lado “dos teus”. De que nos acusas?

As vozes na casa atraíam a atenção e já vários curiosos se amontoavam timidamente junto da parede da entrada.

— Estrangeiros, sim! — Atirou Naci inesperadamente. — Antes de vocês chegarem, todos se respeitavam e cuidavam uns dos outros. Tudo podia estar à vista de todos, que ninguém mexia no que não lhes pertencia. — Ele apontava a lança acusadoramente. — Agora há queixas de desaparecimento de vasilhas, comida ou mesmo peles!

— Espera Naci. — Interveio Erem.

— Todas as noites alguém é visto a rondar os armazéns e, da última vez que perseguimos um desses intrusos, fomos parados à chegada às vossas tendas por homens com lanças. — Continuou Naci ignorando a interrupção do pai.

— Cala-te! — Ordenou o chefe fazendo valer o seu estatuto. — Por causa disto que está aqui a acontecer é que não chamei mais ninguém, além daqueles que reconheço como representantes. Para nos entendermos e não para gritar. — Fez-se um silêncio sepulcral por uns segundos antes dele tornar a falar: — Tailan, ouviste as palavras do meu filho. Não gostei de saber que os homens que deixamos a guardar a aldeia não puderam perseguir um ladrão porque vocês não deixaram. Apareceram com lanças a fazer frente aos guardas, como se de inimigos se tratassem.

— Erem. — Começou o representante dos estrangeiros, erguendo orgulhosamente a cabeça. — Reconheço-te como amigo e como chefe deste povoado que se desenvolve a olhos vistos. As tuas decisões são, na sua grande maioria, sábias e tomadas para o bem de todos, mas não podes esperar que um povo separado se comporte como um só. — Como não o interromperam, ele compôs a pele de lobo grisalha que lhe cobria os ombros e continuou: — Aceitas o nosso trabalho no santuário e as nossas vidas em combate, mas não permites que vivamos entre os teus, nem que construamos casas de pedra… nem os nossos mortos podem repousar ao lado deles. Quando definiste as guardas, fizeste-o na aldeia e deixaste de fora o acampamento onde estão aqueles que partilham contigo o fel, mas não o mel. Quando os homens-macaco atacaram da última vez, morreu um dos vossos, mas também dois dos nossos! Também temos de nos proteger e defender, que achas que pensaram os nossos guardas quando viram três ou quatro homens a correr para as tendas deles, armados de lanças e machados, a meio da noite?

Lemi sussurrou próximo do ouvido do chefe, mas de forma que a restante “corte” escutasse. Naci, atirou um braço ao ar num gesto de desprezo.

— Erem. — Interveio Alim. — O que vejo aqui é um mal-entendido causado pela desconfiança que deixas que habite entre os teus. Além disso, este problema podia ser resolvido com uma conversa entre vocês e não com esta exibição de poder e humilhação com que nos ofendes. Aqui estamos nós, apenas o povo de Barinak[1], mas dividido em dois; os aldeões e os estrangeiros.

— Não somos um só povo! — Gritou Naci incapaz de se conter. — Nós, somos filhos do Clã do Rio Brilhante, das grandes planícies do lago salgado! Vocês são montanheses sem-terra, deserdados dos deuses e que procuram agradar-lhes ajudando na homenagem que lhes fazemos. — Erem estendeu a mão para o silenciar, mas ele continuou: — Como se não bastasse, trazer a má-sorte até nós, agora também roubam a nossa comida.

— Acalma-te, filho do chefe! — Tailan evitou propositadamente o nome do jovem. — Não acrescentes acusações falsas à ofensa que já é esta cerimónia.

— Mas que tens a dizer sobre a verdade de que há roubos de comida? — Foi a vez de Lemi, que todos respeitavam como mais velho, intervir. — Já explicaste a razão para impedir o avanço dos guardas, que tens a dizer sobre os roubos, já que impediste a captura dos ladrões?

O tio de Erem ultimamente caminhava cada vez mais curvado e apoiado num cajado de que nunca se separava, mas ali, deu um passo em frente sem apoio e cheio de majestade, apoiou a mão sobre o braço do sobrinho. A figura esquelética impunha autoridade com a grande calva, o cabelo que lhe restava e as barbas intrincados de brancas, repousando sobre uma túnica negra de pele de urso que lhe descia quase até aos pés calçados com as sandálias de madeira.

— Não têm muito valor estas acusações, para além da ofensa de nos serem dirigidas… — Tailan olhou para o chão com uma expressão de tristeza. — … os roubos são feitos por gente de fora, que se esgueiram na floresta antes que os possamos apanhar. Na noite passada tentamos segui-los, mas perdemos-lhes o rasto. Talvez sejam das cascatas lá para Ner[2], mas não temos a certeza. Vimos que usam facas de cobre, um dos nossos aproximou-se demais tendo sido ferido. Não está nada bem…

— Chamaram Nehir? — Perguntou Erem.

— Vocês não nos querem por perto, por que iriam deixar ir a vossa curandeira? — Rosnou o acompanhante de Tailan que se mantivera calado até aí.

— Nunca vos foi recusada ajuda! — Atirou Zia rompendo também o silêncio. — Vou dizer-lhe que procure o ferido para o tratar.

— Como veem, — começou Alim —, o grande problema aqui é de não falarmos. Esses ladrões, já podiam ter sido apanhados, se falássemos entre nós, em vez de lutar.

— Que te faz pensar que sejam das cascatas? — Interrogou Erem.

— Consta que têm lá um artífice a trabalhar o cobre e a fazer armas. — Esclareceu o companheiro de Tailan.

— O que tem sido roubado não chega para uma aldeia inteira… — estranhou o chefe —… nada parecido com o que levaram os homens-macaco.

— Se calhar porque não conseguiram ainda entrar na casa onde guardamos tudo depois do roubo deles. — Naci esclareceu. — Agora temos guardas e já não há alimentos espalhados por várias casas.

— Podíamos ir lá exigir-lhes que parem com os roubos. — Aventou Lemi. — O chefe da aldeia pode nem saber do que se passa.

— Rir-se-ão de nós. — Sentenciou Naci com uma careta. — Vão achar que somos uns fracos!

— Então? — Tailan estava mais colaborante. — Vamos com um grupo de homens para lhes mostrar que estamos prontos para a guerra?

— Isso seria ameaçá-los. Ficarão ofendidos e zangados. — Disse Erem pensativamente. — Vamos lá acusá-los e nem temos a certeza de que sejam eles.

— Porque não fazemos uma armadilha? — Sugeriu Alim. — Se apanharmos os ladrões e os fizermos dizer de onde são… — Sim! — O rosto de Erem iluminou-se, enquanto se erguia e aproximava dos outros. — Essa é a melhor solução! Vamos reduzir os guardas, ter apenas dois na casa dos alimentos que se afastam por vezes. Mas mais dois lá dentro, que nunca saem. Se alguém os vir antes não pode dar o alarme, apenas corre a avisar os outros em silêncio. Temos de os apanhar vivos.

— Isto, sim, é agir como somos: como irmãos, povo, o povo de Barinak! — Tailan estava obviamente satisfeito e deu um abraço a Erem.

— Esta nossa conversa fez-me ver coisas que não estavam bem. — Concluiu o chefe com um sorriso. — E quando um homem acha que não está a agir bem, deve corrigir as suas maneiras; este plano para apanhar os ladrões deve ficar apenas entre nós, mas a partir de hoje, todos saberão que não há proibições para construir casas de pedra.


[1] Do turco, santuário ou abrigo.

[2] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal Norte) por oposição ao sol do meio-dia

 

10 - Olho por Olho

Parte 10 – Olho por Olho

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Parte 12 – As Aparências Iludem

Na Madrugada dos TemposIntrodução – Na Madrugada dos tempos  

 

 

 

 

 

 

         

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domingo, 28 de maio de 2023

Olho por Olho

 



Na Madrugada dos Tempos – Parte 10    

A guerra é, a princípio, a esperança de que a vida nos venha a correr melhor,

a seguir, a expectativa de que corra pior aos outros,

depois, a satisfação por ela também não correr melhor aos outros, e,

mais tarde, a surpresa por ela correr pior a ambos.

Karl Kraus, Escritor austríaco

  (1874-1936)

Partiram ainda noite escura, em silêncio, uma extensa fila com vinte e dois elementos que marchava com dificuldade sobre a neve fofa debaixo de um ameaçador céu de chumbo. Entre as lanças empunhadas pela maioria destacavam-se os dois arcos de madeira e osso, fabricados por Alim e Beki, os nómadas adotados na aldeia. Este último e também Dogan, sobrinho-neto de Erem eram exímios atiradores e tornaram-se uma mais-valia entre os caçadores, permitindo-lhes matar ou ferir as presas, surpreendendo-as a grande distância.

À cabeça do grupo seguiam Erem e Naci. Se o primeiro seguia de cenho carregado e apreensivo, o segundo exibia um ar de satisfação feroz. Atrás seguiam os restantes, maioritariamente homens, escolhidos a dedo por Lemi que, com exceção dos estrangeiros, conhecia intimamente cada um deles a quem ensinara as artes da caça desde crianças. As quatro mulheres escolhidas eram Ezgi e Eda, que já tinham revelado a sua mestria com a funda no primeiro ataque e duas outras estrangeiras, empunhando lanças e que quase só se distinguiam dos homens por não terem barba. Zia não acompanhou o grupo, para desilusão desta; o chefe convenceu-a a ficar com Nehir e Asil, porque decidira que desta vez não arriscaria que toda a governação do clã se perdesse de uma vez só.

A luz da manhã já iluminava, tristonha, os montes de cristas nevadas e a paisagem ondulante de vegetação rasteira coberta por um manto branco. Esta região distinguia-se dos planaltos onde o clã vivia, era agreste, com pouquíssimas árvores e cortada por profundas brechas ou montes desproporcionais. Os deuses deviam estar furiosos quando fizeram aquela parte do mundo e via-se que era um terreno de exílio para uma espécie que se refugiava, a terra que ninguém queria.

Num autêntico “déjà-vu”, o grupo reuniu-se no promontório que permitia uma ampla vista da entrada da gruta, mas que estava separado desta por uma funda garganta. Aquele era um bom ponto de observação, conseguiam ver, não só o seu objetivo, como uma grande distância em redor… o local ideal para uma sentinela. As pegadas recentes na neve fofa testemunhavam que houve atividade ali nas últimas horas. Havia a forte possibilidade de terem sido avistados.

Erem observou atentamente todos os pormenores, enquanto lamentava não ter trazido Lemi, o seu indiscutível estratega. Ao fim de alguns segundos fez um gesto aos outros e todos se afastaram da crista para uma zona onde não seriam vistos pelo inimigo.

O chefe ficou em silêncio fitando o chão, formados em círculo à sua volta, os outros respeitavam a introspeção. Depois ele ergueu os olhos para cada um deles, fixando-se nos dois archeiros.

— Acham que conseguem atingir a entrada da gruta desde este promontório? — Atirou Erem repentinamente. — Derrubar quem apareça à entrada?

Dogan, um dos mais jovens do grupo, fez uma expressão de incerteza, mas Beki, o mais velho dos filhos do nómada Alim, acenou com a cabeça afirmativamente.

— Então está decidido. — O chefe concluiu. — Desta vez não seremos surpreendidos antes de estarmos todos no planalto de entrada. Eles manterão a vigilância, — explicou dirigindo-se aos outros — e se algum daqueles monstros sair, será morto ou pelo menos afugentado. Vamos escalar a parede até ao planalto e ninguém — aqui olhou conspicuamente para Naci —, repito, ninguém, ataca sem todos terminarem a subida. Subiremos em linhas de quatro, os mais novos e fortes à frente e ajudam os outros assim que chegarem. — Tomando a dianteira, ordenou: — Agora vamos!

Os dois archeiros tomaram posição, o olhar fixo na entrada da gruta, sem descurar os companheiros que desciam a garganta.

Uma águia piou no alto, na sua busca por alguma presa que se aventurasse fora da toca em cima da neve fofa. Tirando isso, não se avistava vivalma, o que começava a ser estranho. Era dia claro e aparentemente ninguém saía da gruta… esperavam que, pelo menos os caçadores, já estivessem fora há muito.

Foram estes pensamentos que fizeram Beki olhar pelas redondezas dos seus companheiros e detetar o pequeno grupo de homens-macaco que, no fundo da garganta, saía de uma fenda na parede e avançava na direção deles. Gritou o alarme e começou a enviar dardos na direção dos inimigos. A primeira flecha cravou-se no tronco de um e a segunda no pescoço de outro, os restantes inimigos, porém, saíram da vista do atirador refugiando-se na parede contrária. Uma última flecha partiu-se contra as pedras; Dogan conseguira finalmente vencer as tremuras e atirar o primeiro dardo.

Naci, Fikri, Altan e dois dos estrangeiros, à cabeça dos restantes, correram na direção indicada por Beki. Gritos de guerra e dor ecoavam no fundo da garganta fora da vista dos aflitos archeiros. Por fim, à medida que o restolho da refrega reduzia, viram um dos mais jovens estrangeiros a fugir perseguido de perto por um homem-macaco. Beki armou o arco e preparava-se para desfechar sobre o inimigo quando se apercebeu que Fikri corria logo a seguir. O corpulento inimigo estava quase a deitar as mãos ao franzino rapaz quando a lança do filho de Lemi cravou-se com um baque surdo nas costas dele, derrubando-o. O fugitivo parou imediatamente de correr e, fazendo jus à sede vingativa que os movia a todos, saltou sobre o homem-macaco tombado e começou a espetá-lo furiosamente com a faca de sílex. Era o filho de uma das mulheres assassinadas no assalto à aldeia. Fikri arrancou o seu dardo das costas do inimigo e ergueu-o num gesto de triunfo para os dois archeiros. Lentamente, os atacantes reuniram-se no fundo da garganta, havia feridos, mas não parecia faltar ninguém.

Não havia agora dúvidas de que haviam sido avistados e os homens-macaco já estavam à espera do ataque. Deixaram aqueles fora da gruta para os apanhar pelas costas enquanto subiam e decerto haveria mais surpresas pela frente.

Rapidamente e sem hesitação, todos se lançaram na escalada. Os dois archeiros mantinham-se vigilantes entre a observação atenta da entrada da gruta e a preocupação dos companheiros que subiam com esforço. Conseguiram perceber que alguém espreitava rapidamente da abertura escura e avisaram por gestos os primeiros que concluíram a subida, invariavelmente Naci e Fikri.

Enquanto os archeiros concentravam a sua atenção nos companheiros, um restolho fê-los voltar-se de supetão; um homem-macaco erguia uma temível clava sobre Dogan. Tinha a cabeça e o rosto coberto de sangue pingando profusamente da haste partida de uma flecha cravada logo abaixo do ombro esquerdo. Beki, que nunca deixara de ter um dardo a postos no seu arco, lançou-o imediatamente sobre o inimigo, mas demasiado tarde para evitar que este descarregasse a moca em cima do companheiro. O infeliz Dogan ainda tentou esquivar-se da pancada, mas esta atingiu-o com violência sobre a clavícula e o braço com que se protegeu. O arco que empunhava desfez-se em pedaços quando o jovem rolou sobre ele.

Tendo uma das ameaças eliminada, o homem-macaco, agora com nova flecha cravada no pescoço, soltou um grunhido inumano ao mesmo tempo que levantava a clava para atacar o outro. Beki recebeu-o atabalhoadamente com novo dardo no peito, mas não parou o ataque. Dogan, tombado aos pés do inimigo e com um braço sem ação, apanhou uma pedra e feriu-o várias vezes na parte desprotegida das pernas entre as botas de pele e a túnica de couro que envergava. Surpreendido pela dor inesperada, o formidável adversário saltou para o lado, pronto para lhe esmagar a cabeça, mas estes segundos foram preciosos para Beki empunhar a sua faca de cobre e saltar sobre ele. Sem espaço para manobrar a clava e sem poder fazer mais do que tentar esmagar o inimigo que se colava a ele, o homem-macaco caiu e debateu-se, enquanto Beki lhe cravava sucessivamente a adaga até aos copos, procurando atingir o coração. Dogan conseguiu arrastar-se até junto dos contendores e rasgou-lhe a garganta com a faca de sílex. Só assim terminou o combate.

Beki ergueu-se ofegante e ajudou o companheiro, que se retorcia com dores, a sentar-se mais comodamente. Aparentava ter o úmero e a clavícula partidos e fora um esforço sobre-humano para se arrastar e ajudá-lo. Devia-lhe a vida com toda a certeza. Depois olhou para os restantes companheiros que terminavam a escalada, ignorando a luta de vida ou morte que acabara de ser travada.

No patamar de acesso à gruta, os atacantes ajudaram os últimos a terminar a escalada e começaram a formar uma linha de cada lado da entrada. Começavam a tombar suavemente diáfanos flocos que pousavam sobre a neve calcada e suja do chão. Não se escutava qualquer ruído do interior escuro e intimidante. Um dos estrangeiros, ansioso por mostrar-se mais valente que os restantes ou incapaz de suportar a expetativa, avançou para a goela negra, tendo sido presenteado com uma lança no peito que o projetou para fora. Tombou numa posição pouco natural, com o peso do dardo a curvar-lhe o corpo para trás, os olhos esbugalhados perderam o brilho rapidamente… uma mancha rubra espalhou-se imediatamente sobre o tapete alvo.

Desta vez, Naci tivera o bom senso de não se precipitar, mas mais dois corajosos jovens se lançaram para a abertura hiante para serem confrontados de imediato com um homem-macaco que derrubou ambos com possantes pancadas da clava que empunhava. Por estarem demasiado próximos, nenhum deles teve tempo de usar a lança que empunhava. Este foi o sinal, porém, para Erem gritar para o resto do grupo se lançar decididamente no ataque. Uns ainda com as lanças, outros, optando por armas mais manejáveis em lugares estreitos, largaram-nas e empunharam os machados de sílex que traziam à cintura.

Chocados com a diferença entre a luz exterior e a penumbra da gruta, os primeiros invasores tiveram de combater por instinto com os quatro inimigos que os receberam com clavas e lanças. A vaga inicial quase foi travada, não fosse Naci espetar a sua lança, por cima do ombro de um dos companheiros, diretamente no pescoço de um dos defensores. Imitando a técnica, os seus companheiros eliminaram rapidamente a resistência e passaram por cima de mortos e feridos. Com os machados e as facas, acabaram violenta e sangrentamente com quantos inimigos tombados depararam. A presença dos amigos feridos e mortos só serviram para aumentar o ódio e raiva que sentiam. Ninguém ficou para os ajudar, todos respingados e inebriados de sangue, como demónios ululantes, atravessaram a estreita entrada e desembocaram numa ampla gruta fracamente iluminada pela fogueira que ardia sozinha no centro. As silhuetas de vários homens-macaco movimentavam-se a esconder-se nas sombras ou nas cavidades em redor.

Soltando gritos horrendos, a horda demoníaca lançou-se como um rio que desagua num lago de águas calmas. Para ambos os lados partiram homens e mulheres com os machados ensanguentados em punho. Atacaram todas as figuras difusas que lhes apareciam pela frente. Fosse a fugir, fosse a defender-se, todos tombavam perante aquela maré de fúria homicida. Gritos apavorados de mulheres e crianças, misturavam-se com urros masculinos de dor ou raiva. Palavras desconhecidas misturavam-se com maldições, todas ecoando na alta abóbada da gruta.

Ferido num braço por uma lança e a sangrar da cabeça por uma pancada de uma clava, para Erem tudo não passava de uma névoa rosada, enquanto se desviava dos ataques e devolvia pancadas selvagens com o seu machado. O corpo e os ferimentos doíam-lhe e começavam a faltar-lhe as forças para manejar a arma.

Gradualmente, a gritaria converteu-se em murmúrios e gemidos, alguns calados violentamente ao som de pancadas surdas.

Sem inimigos à vista, Erem deixou-se sentar pesadamente, arrastando as costas pela parede áspera. O chão de pedra estava morno e viscoso. Passou a mão pela cara para limpar os olhos, mas ficou a ver ainda pior. Deixou cair a cabeça para a frente e fechou os olhos, esgotado.

— Pai? — A voz de Naci sobressaltou-o. — Estás bem?

Levantou o rosto e sentiu a água gelada que lhe despejavam na cara. Esfregou os olhos e estava novamente na penumbra avermelhada da caverna. O cheiro fétido a sangue e carne era indescritível e misturava-se com o fedor de cabelos e pele queimados. Por onde os seus olhos vagueavam só via corpos caídos de bruços ou dorsal, em posições pouco naturais… quase só mulheres e crianças. Havia mesmo bebés tombados sem vida ao lado das progenitoras…

Suspirou e escondeu o rosto entre as mãos. O estupor tomava conta dele ao mesmo tempo que se inteirava da enormidade do que haviam feito. Sentia as forças a faltar-lhe e era de muito longe que lhe chegavam as vozes dos companheiros.

— Vencemos! — Apregoavam uns.

— Acabamos com eles todos! — Gritavam outros.

— Viva Erem, que nos trouxe a uma grande vitória! — Soltou outra voz, logo ovacionada por todos.

O chefe ergueu-se ajudado por Naci e Fikri, que se haviam colocado um de cada lado e depois olhou os seus valorosos companheiros, onde não havia um rosto incólume. Abraçou o filho e deu umas palmadas afetuosas no ombro do filho de Lemi, enquanto sorria e acenava a cabeça tristemente para os outros.

— Vamos pegar os nossos mortos e feridos e vamos embora deste lugar maldito. — Soltou Erem num quase gemido.

Foi num silêncio quase total que revistaram o espaço pejado de cadáveres em busca dos companheiros perdidos, antes de se reunirem todos no exterior. O ataque “bem-sucedido”, saldara-se em seis mortos e quatro feridos com gravidade. Na realidade, ninguém escapara sem ferimentos e a distinção era apenas se precisava de ajuda para andar ou não. Da parte dos homens-macaco, a derrota fora total; quase trinta adultos e várias crianças. Não restara nenhum vivo, os atacantes certificaram-se disso enquanto procuravam os amigos.

Havia poucos deles em condições para arrastar um corpo morto durante as várias horas que lhes levaria o regresso à aldeia, além disso, precisavam de transportar a carne seca e os cereais que encontraram por isso e após animada discussão, resolveram deixá-los. Os cadáveres dos companheiros foram alinhados numa pira feita com a lenha que os inimigos haviam armazenado e incendiada. Os corpos dos homens-macaco ficaram onde caíram, os lobos e os abutres teriam o festim assegurado por vários dias.

 

9 - Velhos InimigosParte 9 – Velhos Inimigos

11 - O Povo de Barinak
Parte 11 – O Povo de Barinak

Na Madrugada dos TemposIntrodução – Na Madrugada dos tempos  

 

 

 

 

 

 

         

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sexta-feira, 28 de abril de 2023

Velhos Inimigos

 


Na Madrugada dos Tempos – Parte 9    

Certamente têm razão aqueles que definem a guerra como estado primitivo e natural. Enquanto o homem for um animal, viverá por meio de luta e à custa dos outros, temerá e odiará o próximo. A vida, portanto, é guerra.

Hermann Hesse

Escritor e pintor alemão

(1877-1962)

 

Todos estavam indignados com a audácia dos homens-macaco, principalmente os estrangeiros pelo assassinato dos dois homens. Aquele grupo, que se mantinha mais ou menos segregado da aldeia, já tinha quase tantos elementos como o próprio clã e, se inicialmente eram olhados com desconfiança, já circulavam livremente entre os demais, fazendo trocas e trabalhando onde era preciso.

Erem convocou um conselho para a semiconstruída casa da reunião, como todos lhe chamavam. As paredes não estavam totalmente erguidas, mas já representavam uma barreira eficaz contra o vento gelado. Os grandes troncos, previamente limpos das cascas, estavam enterrados profundamente à distância de dois homens e o espaço entre eles era diligentemente preenchido com camadas bem equilibradas de pedra. O objetivo era erguer aquelas paredes até ao limite dos troncos onde seriam “fechadas” com travessas de madeira, sobre as quais assentaria o telhado de colmo. Seria uma obra única nas redondezas.

Toda a população da aldeia já representava uma pequena multidão que Altan, o filho mais velho do chefe e Civam, um irmão de Zia tentavam silenciar. Foi, porém, a voz forte de Lemi que conseguiu impor respeito e gradualmente todos se calaram. Erem olhou com satisfação o amigo e tio, embora se sentindo preocupado pelo envelhecimento que este inverno estava a produzir nele.

O chefe subiu a uma pedra para poder olhar para todos e para ser visto. A seu lado esquerdo colocaram-se Zia e Civam e ao direito os seus filhos Altan, Tekin e Asil… uma vez mais Naci primava pela ausência.

— Amigos e vizinhos. — Começou ele à laia de apresentação. — Na noite passada sofremos uma grave afronta; mataram e feriram alguns dos nossos e roubaram e destruíram alimentos que nos irão fazer muita falta. — Um coro de vozes iradas e punhos erguidos ameaçadoramente apoiaram as palavras do chefe que fez um gesto a pedir silêncio. — Não nos bastam já as vezes que atacam os nossos grupos de caça, ou roubam as peças que perseguimos, como agora invadem as nossas próprias casas. — Novas vozes indignadas. — Por muito que me custe, tenho de vos pedir novamente para arriscar a vida pela nossa sobrevivência. Temos de voltar à gruta do nosso inimigo.

— Mas desta vez, temos de acabar o serviço de vez! — Gritou Naci da entrada do edifício. — A nossa covardia colocou-nos nesta situação; morreram alguns de nós no ataque, mas não devíamos ter desistido! Devíamos ter voltado, nem que fosse com todo o nosso clã, nem que morresse metade de nós, mas teríamos acabado com eles de uma vez por todas! — Havia alguns murmúrios de aprovação na audiência. — Em vez disso, andamos a arrastar pedras pelas montanhas e vales.

— O apoio dos deuses é o mais importante! — Gritou Zia, incapaz de se conter, sobrepondo-se ao coro de vários elementos da audiência que também se indignavam pelas palavras heréticas do filho do chefe. — Sem os deuses nada somos! Que podemos nós contra Tarhun[1], quando atroa os céus e destrói grandes árvores ou queima florestas inteiras? Que podemos nós contra Swol que tanto nos traz o suave calor quando a noite deixa de ser maior que o dia, como abrasa o ar e seca os chãos quando o dia é maior que a noite?

— Temos de eliminar a ameaça, sim. — Interveio Erem para conciliar as partes. — Temos de a eliminar de vez, mas agora invocaremos o apoio dos deuses antes de ir. Quero que todos quantos podem lutar se armem e se preparem para a viagem, ficam apenas os velhos, os doentes e as mulheres com crianças. Lemi organizará os grupos e escolherá alguns guerreiros que ficarão com ele a guardar a aldeia. Partiremos amanhã à primeira luz. Não pode ir ninguém ferido, nem doente, lembrem-se que está muito frio e as neves estão altas. Vai ser uma caminhada muito difícil. Quero aqui aproveitar — olhou na direção dos estrangeiros — para pedir a ajuda dos nossos vizinhos, para que nos cedam os guerreiros que puderem para combater esta ameaça.

Destacou-se entre o grupo um homem chamado Tailan, visto pela maioria como o porta-voz. Era dos mais velhos, o rosto alongado e enrugado de muitos sóis, o cabelo comprido preso num rabo de cavalo e a barba mantida curta. Envergava uma camisola de lã escura por baixo de um capote de peles de lobo.

— Apoiaremos de bom grado, grande chefe! — Respondeu ele na sua voz forte e de sotaque carregado. — Mas quero também pedir uma graça, a ti e a todos os que em Barinak[2] nos têm acolhido tão bem; gostaríamos de também poder enterrar os nossos mortos no santuário que estamos a ajudar a construir. Os mortos desta noite… — O homem calou-se à medida que vozes indignadas se faziam ouvir na audiência.

— Esperem! — Mandou Erem. — Acalmem-se, vá! — Insistiu o chefe sobre os descontentes. — Por que o não hão de merecer eles? Não trabalham lá como nós? Não colaboram em todas as atividades do clã como todos os outros? Mesmo nas construções na aldeia, que já não lhes diria respeito? — O descontentamento reduzia-se a alguns resmungos. — Bem sei que são estrangeiros, não são descendentes do grande clã de Birol, mas partilham connosco as dificuldades. Proponho que enterrem os seus mortos no santuário, sim, mas, tal como vivem nos limites da aldeia, os enterramentos serão em volta do círculo e não dentro. O círculo interior fica reservado aos elementos do nosso clã.

Tailan curvou a cabeça em agradecimento, ignorando alguns elementos da audiência que insistiam em manter a discriminação mais acentuada.

— Daqui vamos todos para o santuário — Zia tomou a palavra com autoridade, dando por encerrada a discussão —, sacrificaremos uma cabra e um cabrito. Farei a leitura das entranhas da velha para a aldeia e da nova para o nosso futuro. Invocaremos o favor dos deuses na nossa jornada e, com ajuda deles, desta vez venceremos.

Foi uma grande comunidade que se juntou no santuário onde havia agora cinco monólitos. As condições climatéricas limitavam muito o tempo de trabalho e a pedra com o tamanho necessário e as características exigidas por Zia ou Nehir encontrava-se cada vez mais distante. Por vezes faziam grandes caminhadas para ver um megálito referenciado por um dos caçadores, para chegar à conclusão que não era do material certo, não tinha tamanho ou estava quebrado. Agora optavam por duas equipas chefiadas por uma das mulheres que localizavam as pedras e deixavam lá aqueles que a iriam desbastar para a tornar mais leve e transportável. Só depois se iniciaria o transporte. Tudo tomava mais tempo; encontrar os objetos, a distância e os obstáculos naturais.

Erem, Zia e Nehir compareceram no santuário envergando as vestes e símbolos dos seus altos cargos. Ele trazia a cabeça e a pele de leão, que eram a majestade e o poder sobre os outros e a lança, que representava, ao mesmo tempo, a ferramenta que alimentava o clã e a arma que o defendia. Zia e Nehir envergavam alvos casacos de peles de carneiro que lhes desciam até aos joelhos com as golas e punhos de pele de coelho matizados de branco e cinzento. A mãe estava coroada com o cocar de penas de corvo e pomba cinzenta e a filha com outro de pomba branca, distinguindo os seus estatutos de sacerdotisa/oráculo e o acólito. 

Ainda havia murmúrios descontentes quando Zia executou as mortes rituais junto à fogueira no centro do círculo e invocou os deuses para que vissem o sacrifício que faziam. Aqueles animais eram preciosos e podiam, no espaço de poucas semanas, serem essenciais para evitar a morte pela fome de alguns deles, no entanto, faziam aquela oferenda para que as divindades percebessem que lhes davam mais importância do que à sua própria subsistência.

A noite descia rapidamente sobre o povoado e refletia-se apenas em pequenos espaços deixados entre as nuvens escuras que praticamente cobriam o céu. A luz bruxuleante das chamas projetava a sombra da sacerdotisa nas pedras: um gigante com enormes chifres que parecia querer libertar-se para avançar sobre os crentes. Também o som ressoava de forma impressionante nos monólitos, os que estavam mais perto, sentiam a vibração que deles provinha e as palavras do oráculo ressaltavam e pareciam ficar suspensas no ar. Zia invocava a presença de Swol que não os abandonasse e regressasse rápido com o calor, a caça e as colheitas, de Mensis para que lhes iluminasse a noite e os caçadores não se perdessem no caminho e de Tarhun para que os conduzisse à vitória sobre os inimigos. Enquanto isso, retirava as entranhas dos animais sacrificados para potes de barro que lhe eram estendidos por Nehir.

O chefe do clã colocou-se no meio das duas mulheres e aproximou-se da sacerdotisa para receber a premonição. Nehir marcou-lhe o peito com uma sanguinolenta mão aberta sobre o coração e Zia riscou-lhe o rosto com três dedos sangrentos em cada face antes de lhe segredar o que vira nas entranhas dos animais. Ele olhou-a com profundidade antes de confirmar com um aceno de cabeça que aceitava a previsão que podia ser divulgada ao povo.

Voltaram-se os três de costas para o altar sacrificial, de mãos dadas, os rostos negros e dourados pela luz da fogueira transformados em máscaras divinas, prestes a revelar a vontade dos deuses.

Swol, — gritou Zia, acima dos murmúrios que se silenciaram de imediato —, abraça os seus filhos e recomenda paciência para regressar em força e abundância. Mensis, diz; as noites serão calmas e, embora as nuvens de neve por vezes ensombrem os céus, ela estará lá para velar por nós. Tarhun dá-nos a sua bênção para levar a vingança aos nossos inimigos. A luta será difícil, mas o nosso clã prevalecerá!

Gritos de alegria e vitória ecoaram entre os crentes que se felicitavam mutuamente por tão auspicioso augúrio. Mas logo Zia tornou a erguer as mãos para impor o silêncio.

— Amanhã será um dia muito comprido e difícil. — Anunciou ela assim que todos se calaram, erguendo um dos potes de barro utilizados na cerimónia. — Aqui estão o sangue da cabra e do cabrito; o velho e o novo misturados e inseparáveis, como sempre deve ser.  — Com um ramo de oliveira aspergiu pingos carmins sobre os crentes. — Todos devem molhar as mãos nele e marcar as faces com três dedos, que dá a força de três homens e as roupas com a mão aberta que dá a coragem do nosso povo. Depois vamos descansar nos braços de Mensis e acordaremos ao som das cornetas de Tarhun.



[1] Deus do trovão, da caça e da guerra

[2] Santuário

8 - O Mundo Pula e Avança
Parte 8 – O Mundo Pula e Avança

10 - Olho por Olho
Parte 10 – Olho por Olho

Na Madrugada dos Tempos
Introdução – Na Madrugada dos Tempos

 

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sábado, 1 de abril de 2023

O Dia d’Os Hóspedes

Capa do livro “Os Meus Hóspedes”
de Fernando Ventura Morgado
 
Foi no passado dia 1 de abril, sim, é verdade, no dia das mentiras, que fui assistir à apresentação do livro "Os Meus Hóspedes" do meu grande amigo Fernando Ventura Morgado e mais uma produção das Produções Debaixo dos Céus.
A capa, com o design da produtora, usufruiu de uma das belas fotografias tiradas pela companheira e musa inspiradora do nosso escritor, a doce Fernanda Morgado.
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Fernanda Morgado
O evento aconteceu na bonita Vila de Alijó que, para quem não sabe, fica no extremo nordeste do distrito de Vila Real e grande parte do seu território está dentro da Região Demarcada do Douro,  além de ser berço do célebre Moscatel de Favaios, produzido  principalmente na freguesia que lhe empresta o nome.
 
O Homem do Douro

A estátua do Homem do Douro numa montagem extraída do Facebook do município

E que foi o meu amigo Morgado, um miragaiense, tripeiro dos quatro costados, fazer para o “Reino Maravilhoso”, distrito natal do grande e saudoso Miguel Torga? É fácil; como homem de paixões que é, apaixonou-se pela região e não mais parou sem conhecer melhor aquela terra e escrever sobre ela e as suas gentes. Fez lá vários amigos, claro, há alguém que consiga resistir ao sorriso, humildade e entusiasmo do Fernando Ventura Morgado? Como poderia ser de outra forma? Também os portuenses são homens do Douro, dos seus limites pois sim, daquele local onde o majestoso rio se liberta de paredes abruptas e dos montes rochosos e vai conhecer o mar. São portanto durienses também, os habitantes da Invicta, filhos e netos dos outros, daqueles que como o rio, um dia desaguaram para a última cidade antes do mar. Esse rio que lhes corre nas veias, como se sangue fosse, é um laço de irmandade que faz com que se reconheçam e se sintam irmãos.
Foi assim que o “duriense da foz” retornou às origens dos seus antepassados, “durienses transmontanos” para escrever mais um romance de amor, onde consta que um tal de Blamy e uma Joana se conheceram e se relacionaram tendo como pano de fundo a magnífica paisagem transmontana. Não foram sequer esquecidos os cheiros e os sabores das uvas e dos néctares que aqui se produzem. Para saberem mais do que isto terão de ler este excelente romance... talvez depois disso também desejem ir conhecer Casal de Loivos, onde parte da ação decorre.
Mas o que me traz aqui é a apresentação que aconteceu no passado dia um, onde o Fernando Morgado apresentou à sociedade a sua mais recente criação.
“Os Meus Hóspedes” tiveram o apoio da Câmara Municipal, representada nas pessoas da Vereadora da Cultura a Dra. Mafalda Mendes e a diretora da biblioteca, Dra. Otília Magalhães, que muito amavelmente cedeu as elegantes instalações da Biblioteca Municipal.
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Da esquerda para a direita:
Otília Magalhães, Fernando Morgado, Mafalda Mendes
 
Depois de uma pequena abordagem ao livro e à obra de Fernando Morgado por parte da revisora e amiga, Suzete Fraga, autora do livro “Almas Feridas” (Euedito/Sui Generis 2016), houve direito a uma impressionante leitura de um pequeno excerto do livro por Ana Cristina que, além de funcionária da biblioteca é Monitora de Expressão Dramática e dinamizadora da cultura popular.

 

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Suzete Fraga

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Ana Cristina
 
 
Foi também uma oportunidade para se juntarem, quase de surpresa, os fundadores do grupo de escritores Pentautores do qual o nosso Fernando Morgado é praticamente um membro honorário por direito próprio. Este grupo já produziu várias obras conjuntas de contos, como “Heranças”, “Histórias da Chuva e do Vento” ou “Deusas, Fadas e Bruxas”, entre outras.
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Os Pentautores

Clique nas imagens para saber mais sobre eles

Suzete Fraga

Suzete Fraga

Carlos Arinto

Carlos Arinto

Manuel Amaro Mendonça

Manuel Amaro Mendonça

JorgeSantos

Jorge Santos

Toda a sessão decorreu de forma mais ou menos espontânea e informal, enquanto o autor descreveu as suas “aventuras” em terras de Alijó e dos muitos amigos que fez, com especial referência ao senhor Albano Pereira, de Casal de Loivos, ex-autarca dessa freguesia e do Pinhão, a quem atribui grande mérito na produção deste romance e ao senhor Faustino e a esposa Leonilde, proprietários da Quinta do Jalloto, em Casal de Loivos, a quem teceu rasgados elogios de hospitalidade e simpatia.
Numa sala bem composta, a apresentação acabou por derivar nos problemas que afligem o mundo das letras, numa enorme revolução motivada pelos meios eletrónicos e nas novas gerações, no seu desinteresse pelos livros e pela escrita, completamente rendidos aos telemóveis, tablets e computadores.
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No fim houve livros e autógrafos para quem quis, além de um pequeno lanche fornecido pela Câmara Municipal, onde não podia faltar o incontornável Moscatel de Favaios.
 
Livros

 

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Foi um dia maravilhoso e enriquecedor que tenho a certeza agradou a todos quantos nele participaram e, com toda a propriedade, encheu o Fernando Morgado de orgulho.
Um dia a reter na memória e a inscrever na carreira deste “jovem” escritor.

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Veja o vídeo de apresentação no Youtube:

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Fotos: 

  • Fernanda Morgado
  • Jorge Santos
  • Manuel Amaro Mendonça

Imagens várias retiradas do sítio do Município de Alijó

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